LUTE PELOS SEUS SONHOS
A metade aliada que tenho diz: – mantenha a prudência!
Castigo por não ter completado a inocência em paz. O Barão Virgulino desdisse tudo que me havia prometido. Não tenho procela de tempo a encalhar aqui não, compadre, tenho de lascar chão! Aliás, qual foi o fósforo que acendeu o Brasil, compadre? Riscou e explodiu tudo... Tivessem metido fogo na vela, compadre, na vela... Ninguém aqui quer parcimônia: – lucro máximo, vantagem sempre, privilégio e regalia. Tudo isso vem na linha retórica do direito, compadre. É regra!
– Pra onde vai, compadre?
– Longe.
– Quando?
– Perto.
– E a família?
– Isso ainda to resolvendo com o Barão...
Tudo isso é regra, compadre, regra. E já! Não existe espera pra quem nunca esperou.
O homem amontoou-se em sentenças e decisões a não se usar, cobrou ação de si e preferiu contar com o acaso a lhe observar de perto. Dispôs-se a perceber a chegada do Barão Virgulino por qualquer momento, percebeu atônito ao prever o instante, qualquer instante, o Barão levar-lhe-ia a família. Os meninos serão trocados – não se prestam ao trabalho bruto; as meninas valem ouro, virgindade e beleza, exatamente na mesma medida.
– O Barão vem aí, compadre. Sobrará nada não. Preparei.
– Oras compadre, oras!
– Isso mesmo, compadre. Vai todo mundo e não tenho como dobrar. Sabe, compadre, perdi a honra...
– Oras compadre...
– Minha história não tem essa de primeira pessoa, compadre, não... A minha história, compadre – socorro, não me venha mais ninguém ouvir! – é narrada em qualquer tempo, qualquer eu, sem lirismo, sem frescura, sem cabide, compadre. Sabe você isso, compadre; sabe você isso!
O meu outro lado, perversidade à parte, nada me diz.
Há alguns planos. Vingarei com o fogo a nódoa que ao fogo cabe; tenho o croqui da missão, invasor noturno, palhas da estiagem, o Barão também tem família; esse país conhece de outras leis. Quem não sabe da negligência que há no sítio do Barão? – ninguém ousa lá se meter. Sei que agora sou idéia fixa: tenho medo mais não: levará o que é meu, ficará sem o que é seu. E assim estamos nossos. Justo!
– Você está para o tresvario como o sol está para luz...
– Compadre, ouça, eu desabafo antes que faço; compadre, eu sempre fui assim! Ouça, compadre, essa é a minha história.
– As evidências de que...?
– De que o homem escolhe aquilo que consegue! Nada é mais provável do que o Barão ali aparecer com as suas tropas de bolso, atravessar a porteira e barbarizar a minha herança. Daqui desta escada eu permanecerei a passa-olhos assim, inerte, à espera da fatalidade em meu pescoço ou um tiro na cabeça. Os quais não virão. Assim o Barão Virgulino sentenciará o fim de sua propriedade, de sua mãe, dos tios, dos filhos e da Maria.
– Não será melhor que você se mude de cidade, compadre, evitar essa cerimônia triste, levar os filhos e a comadre para viverem em paz?
– Compadre, sabe você há exatos trinta e três anos que o meu destino é contar com a minha história, e o que está escrito é uma vingança. Sei que tenho pouco tempo e devo fugir, o farei, mas ficarei aqui para cumprir o dito e feito.
– Já não entendo mais, compadre...
– É a verdade disso tudo que se chama mundo, compadre. Verdade é que é só uma, fosse outra e as palavras eram cheias de alegria. Tocarei fogo na mata, venho pelos fundos, ninguém perceberá.
As minhas duas partes disputam pelo fim da simetria. Yin e Yang no caboclo são orações de duas cores mesmo: pouca coisa nesse sujeito se equilibra.
– Compadre...?
– Diga, compadre.
– Virou-se e parece sorrir. O que está a pensar?
– Duas dúzias de arbustos, ramas de sinensis, outras camélias, outros arbustos. Há muito que regar!
– E o plano de fuga? Ou a vingança?
– Não sei de que fala vem essa sua idéia.
– Outra vez, compadre? Há quanto tempo o Barão Virgulino lhe persegue, afinal? Todo ano novo vem você com a mesma história... E cada vez parece que a veracidade é diferente.
– Não sei de que fala vem essa sua ideia.
– Ou, de que ideia vem a minha fala, no caso?
– Quantas vezes você sonhou na vida, compadre? Por isso – vê, compadre, sem ofensa, nossa proximidade permite – o que lhe resta além de uma casa comum demais compadre, além de uma barriga, uma calvície? Diz, compadre, como é viver sem sonho?
– Deixa pra lá, e não sei porque ainda caio nesse falso sotaque nativo do Sertão de Girau!
– É de Inhapi!
– Assim como já foi da Mata Grande...! Boa noite, compadre.
– Boa noite, compadre. E vê se sonha um bocadinho.
O vizinho deu-lhe as costas, hasteou a mão direita, saudou como quem deseja despedir-se para sempre sem demonstrar afeto. Optou por julgar que a sínese do compadre era algo da boca para fora a não precisar de considerações sérias. Dirigiu-se à sua casa, instantaneamente ao lado. Fechou o portão, dispôs o alarme, optou por algum filme na TV a cabo. Nunca foi para o Nordeste brasileiro, não tem a mínima noção de onde fica o sertão alagoano e nem acredita que o coronealismo se faça presente com algum tipo de poder no interior paulista em pleno ano de doismilecatorze. Na TV há um canal com as câmeras de vigilância do condomínio, ele se diverte observando o movimento. O preto-e-branco mais divertido desde Chaplin!
Na bela residência à direita, da qual saíra há pouco, uma curiosidade: o portão se abre, e é nítida a presença de um sujeito com chapéu de couro na cabeça, dois coletes de balas, um fuzil pendurado nas costas, peixeira na bainha. Óculos arredondados, feição de impostor, maldade no modo de morder os lábios.
Ao aproximar a imagem, nota-se o sujeito, muito sujo, todo em couro, montado em uma tonca.
Tudo pareceu óbvio demais.
Optou por desligar a TV.
Entrou num site de imóveis, decidiu pôr a casa à venda.
Futuramente dirão que há fotos felizes dele e de sua esposa, quase sempre em passeios de navio.