A Carta

«Tudo por causa desse amor amargura, amor escravatura, que transforma, que enfeitiça, fazendo do amante a sombra do amado.» (Paulina Chiziane)

Querido Calani:

Quando os teus olhos alcançarem estas palavras garimpadas deste peito que tem a tristeza como o seu único tesouro, eu já estarei bem longe daqui: longe dos teus braços confortando a minha solidão, longe dos teus lábios me calando a palavra, longe do teu corpo me queimando a tristeza, longe das noites e dos dias que todo grande amor entre o céu e terra pode merecer.

Não estranhes as lágrimas que encontrares esparramadas neste triste pedaço de papel, ao qual denominamos carta. Se as encontrares, uma vez que só Deus sabe quando retornarás à casa, sendo que a contrapartida do suor que te desce a camisa, o teu salário, por estes dias já te molha a mão e os miolos.

É-me muito difícil escrevê-la. Eu seria capaz de dar a minha vida para que tal nunca viesse a acontecer. Cada letra, cada palavra, cada frase dela dilacera-me de tal maneira o coração, que já me sinto a suicidar-me, sem vida, mais morta que um morto, mais morta que o mais profundo silêncio, mais morta que uma múmia esquecida num sarcófago sem tempo e sem idade, lá nas profundezas das pirâmides do Egipto.

Por mim, eu nunca a escreveria. Mas as coisas nem sempre são como a gente quer que elas sejam, como já disse alguém que, provavelmente, terá o dito enquanto estivesse em circunstâncias similares às minhas. Às vezes temos de decidir e não ficar no intermédio de dois caminhos à espera de um milagre que nunca chega. Ou pior, à espera de um milagre que nem o mais afastado vislumbre de chegada insinue mostrar.

Contudo, devo dizê-lo: a nossa felicidade durou até aonde as pernas frouxas do nosso amor conseguiram nos levar. Não me queixo. Um dia fomos felizes. Muito felizes! Lembro do dia em que, sem que me conhecesses, depois de teres-me penetrado longamente os olhos e a alma, por uma ou duas horas, enquanto eu me encontrava sentada com algumas amigas numa das mesas do Alfacinha, este bar muito famoso no nosso tempo de juventude, caminhaste em minha direcção, e já diante de mim, sem que te importasses com os presentes, sussurraste-me as palavras mais lindas que uma mulher pode ouvi-las, vindas entornadas dos lábios de um homem: «Não a conheço, também não me conhece, mas eu não posso deixar de dizer esta verdade que me corre as veias desde o primeiro segundo em que pousei os meus olhos nos seus: Quero que seja a mãe dos meus filhos.» Curto e direito.

O meu peito de imediato transformou-se num lugar devastado por uma bomba atómica, uma Hiroxima autêntica. O calor percorreu-me o corpo todo, tornando-me o corpo mais água que carne. Suei mais que a mesa na qual estávamos sentados, esta que se encontrava com o pano nela estendido todo ensopado, depois de eu ter derrubado o copo de refrigerante que eu tomava. Estava nervosa. Muito nervosa! Nem Alfredo, meu namorado na altura, que bem o conheces, havia conseguido alguma vez fazer com que eu me sentisse tão segura no amor, ouvindo as palavras de um homem.

«Meu Deus, o que digo?» Num segundo só, perguntei-me mais de mil e uma vezes e não encontrei nenhuma resposta que pudesse ser traduzida por palavras. Deves ter percebido a resposta nos meus olhos, que se enchiam de constelações. Tomaste uma das minhas mãos nas tuas, repuxaste-me o corpo ao teu e incendiaste-me com o beijo que me queima até hoje que te escrevo esta carta.

Em seguida, braços violentos separam-nos como se tirassem a pele da carne, a carne dos ossos. Era a tua namorada. «O que significa isto, Calani?», disse ela explodindo de uma bomba atómica diferente da minha, mais potente e mais devastadora. «Beijar outra mulher a minha frente?»

«Desculpe-me!», disseste à Sheila, a tua namorada, enquanto eu percorria o teu corpo másculo, teus braços viris, teu peito saliente, tuas mãos ingentes, toda fúlgida de desejo. Ah!, tua voz robusta, segura, penetrante, entrando-me o ouvido... «Você sabe que eu não sou de esconder nada para ninguém. Principalmente, se forem coisas relacionadas com o mais nobre sentimento entre os homens, o amor. E não mudarei hoje. Desculpe-me se irei feri-la com o que irei lhe dizer. A verdade é que eu acho que não é amor o que eu sinto por ti. Pensei que fosse, mas não é. Amor é sentir a alma assim leve, pronta para inventar um voo, ainda com os pés no chão; é sentir vontade de estar, de se entregar, sem se importar com os olhos do mundo que nos assiste; é sentir o corpo a falar de amor mesmo sem dizer qualquer palavra... E isso, que Deus não me permita profanar a sinceridade, eu somente senti hoje quando olhei para esta moça.» Apontaste-me, com as mãos e com os olhos. As mãos, trémulas; os olhos, afogueados. «Olhando para ela, eu vi claramente onde os meus sentimentos estavam perante a sua pessoa: pode ser outra coisa, amizade, costume, sei lá, mas amor, não.» E o calor das tuas mãos nas minhas, a tua voz de leão… tudo incendiou-me mais ainda. «Por isso», continuaste, enquanto os teus olhos já estavam muitíssimo entrados nos meus, «aceitas casar-se comigo?!»

Se o meu corpo já era uma bomba atómica, com aquela pergunta, sei lá em que bomba eu me transformei. Todo o restaurante estava paralisado, dezenas de olhos postos em nós dois, conspirando para que um «sim» se libertasse dos meus lábios. O «sim», ou melhor, os «sins» já habitavam-me desde o primeiro olhar, por isso deixei que os meus lábios libertassem o óbvio. «Sim, aceito.»

As palmas encheram o restaurante. Clientes pagaram rodadas de bebida. Os mais sensíveis deitaram lágrimas. Outros avermelharam os olhos. A felicidade havia tomado conta do lugar. Até a Sheila parecia ter-se rendido ao nosso amor; sorria, dando-me força. Acredito que o Alfredo, se lá estivesse, com certeza, também apoiaria o nosso amor.

Pouco depois, casamos! Ah! Como eu estava linda naquele vestido longo, com aquela cauda comprida que roçava o chão, com o véu que me cobria o rosto para que ele brotasse para ti como uma desconhecida flor, na hora do beijo! E você: tão lindo naquele casaco preto, naquelas calças pretas listradas, naquele colete fazenda cinzento, naquela camisa branca de colarinho engomado, naquela gravata cinzenta, numa única pessoa tanto charme que até hoje me emociono só de olhar o nosso guarda-roupa!

A lua-de-mel. Ah! A lua-de-mel! Foi mesmo com mel que passamos cada segundo naquele hotel de cinco estrelas, comprovando que havíamos nascido um para o outro. Foi aí onde formamos os primeiros membros da nossa primeira filha, a Helena, que tão linda nasceu meses depois. Anos depois veio a Lídia, depois a Carla, e, por fim, a Kátia. E já estava completa a família. Embora me acariciando o barrigão, nos meus últimos meses, quando eu estava grávida da mais nova, a Kátia, antes do parto, vivesses dizendo: «Oxalá que desta vez seja um filho homem!»

Mas como já disseram, as coisas nem sempre são como a gente quer que elas sejam, ou como eu tive que aprender a dizer, as coisas que são como a gente quer que elas sejam, assim como a vida, não duram para sempre, toda essa felicidade foi passado. Porque agora não passo de uma escrava, para ti. Escrava para cuidar da casa, das tuas filhas, do perfume da outra, e de todo o resto, que com o amor não se compadece. Agora que te escrevo, com certeza, estás na casa da Amélia, a tua segunda mulher, com quem tens um filho homem, o Júnior, como sempre quiseste, e eu nunca consegui to dar.

Faz um mês que não me tocas, que não ouço uma palavra de carinho, que me insultas por tudo e por nada, que mal vês as tuas filhas, que não deixas comida em casa.

Por isso tudo, tomei a minha decisão. Hoje tomei coragem. Deixei que as tuas palavras ecoassem no fundo da minha alma e fiz o que tinha de ser feito, tomei uma decisão: como não aguento mais com o sistema, irei abandonar a república, como tanto pedes, como sempre me dizes quando tento concertar o nosso amor, «Quem não aguenta com o sistema, abandona a república.»

Vou abandonar esta república chamada casamento, porque o sistema da tua república — a segunda mulher, as humilhações, o desrespeito, a falta de zelo, o abandono — tudo isso já me cansou. Ou melhor, abandonarei esta república chamada vida. Quem sabe se do outro lado da vida, as mulheres que não conseguem dar filhos homens, sejam de igual modo tratadas com as que o conseguem. Ou se não o são, oxalá eu tenha a possibilidade de reencarnar Amélia, ela que conseguiu dar-te um filho homem, o Calani Jr., que eu tanto, tanto amo!

Não tenho mais nada a dizer. Quero apressar-me para a minha viagem ao além, para a felicidade. Uma república que tenha um sistema que não nos agrada deve ser abandonada às pressas. Se ninguém disse isto, digo-o eu.

Mais antes partir, tenho dois pedidos. Peço que me perdoes, se não pude ser essa mulher ideal para ti. Peço também que não deixes que as nossas filhas — que espero que me perdoem por tudo isso que elas não podem entender agora — vejam o meu corpo sem vida, pendurado no lustre do nosso quarto, no qual por muito buscamos pelo filho homem que tanto desejavas, e, infelizmente, eu não pude to dar.

Da tua amada, Mercelina.

C C Cossa
Enviado por C C Cossa em 24/01/2014
Reeditado em 18/02/2014
Código do texto: T4662703
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