O Viajante
Na plenitude do verão, num reino tão distante quanto possível do mar, nasceu um homem que seria normal, não fosse a maldição que nasceu com ele: jamais poder parar. No princípio, quando criança pequena, a maldição o levava para longe pela mão de outros, os maiores. Para ele, O Viajante, não fazia, então, muito diferença: aqui, ele vivia como viveria lá - pouco importava o ambiente, o idioma, o clima... que são amigos para aquele que, do mundo, conhece apenas o seio materno?
Mas não seria tão simples. O Viajante cresceu, e a maldição cresceu com ele. A primeira coisa que teve de abandonar foi aquela que outrora era todo o seu mundo: a mãe de seio quente e aconchegante. Não a teria deixado, mas a maldição sussurrava-lhe coisas a noite; certo dia, ele olho para o horizonte e este lhe pareceu pequeno e limitado, cheio de barreiras... teve de partir. A mãe o levou até a porta; ambos seguravam corajosamente as lágrimas, e o nó na garganta impediu que trocassem palavras de despedida. O Viajante deixou a mãe sen dizer adeus... e jamais tornou a vê-la.
Passou por tantos lugares que poderiam ser bilhões - se houvesse, no mundo, bilhões de lugares - sem nunca se demorar em nenhum. Conforme chegava e partia, percebeu que a maldição o impelia - a ele, o Viajante, que nascera num reino tão distante quanto possível do mar - que a maldição o impelia para junto do mar.
Vê-lo pela primeira vez foi um arrebatamento - vejamos que, por vezes, a maldição parecia uma bênção. O mar preenchia seus sentidos. Antes de vê-lo, ouviu: chegava, pelo ar, um marulhar suave, quase um não-som, que foi aumentando conforme se aproximava; um som de inegável poder.
Antes de vê-lo, sentiu seu cheiro: chegava, pelo ar, o familiar cheiro de peixe, o cheiro familiar de sal; juntos, não eram familiares, mas O Viajante soube de onde vinham.
Ao vê-lo, finalmente, pôde prová-lo na língua: chegavam, pelo ar, o mesmo sal e o mesmo peixe; um sabor desagradável, mas que denunciava agradáveis novidades.
Ao vê-lo, mar e lágrimas encheram seus olhos, e O Viajante recordou de algo que quase havia perdido, deixado cair, pelo mundo: a gratidão. Não sabia a quem agradecer, mas seu "obrigado" se foi, pelo ar, e chegou a alguém. A maldição, por vezes, parecia uma bênção.
Mas não era.
Ali chegou e, como sempre, partiu. A única coisa que não abandonou - além da maldição - foi o mar: chegara, ao menos, a um pedaço do seu destino.
A maldição, por vezes, parecia uma bênção: certa vez, entre um chegar e um partir, encontrou algo que quase havia perdido, deixado cair, pelo mundo: uma companhia - viajar é sempre solitário. À beira-mar, encontrou alguém que, como ele, havia percorrido tantos lugares que poderiam ser bilhões - se houvesse, no mundo, bilhões de lugares. A Viajante. Amaram-se.
A maldição parecia uma bênção.
Ele, porém, descobriu que não havia maldição a empurrar sua companheira - nem nada além de uma obstinada busca por qualquer verdade. Ela poderia optar por ficar - e optara. A bênção revelava-se, novamente, maldição.
O Viajante, esperançoso e desesperado, lutou para ficar - pela primeira vez em anos. Lutou com bravura. Já se havia passado muito tempo de quietude junto ao mar e ao amor, e ele se permitiu saborear uma vitória. Lutou bravamente. Perdeu. A seu tempo, aprendeu que nascer amaldiçoado é morrer amaldiçoado.
Foi-se, sempre adiante, deixando para trás o seu coração.
Quando deu por si, equilibrava-se à beira do cais, vendo o mar revoltar-se poucos metros abaixo. Quando deu por si, equilibrava-se entre a vida e a morte.
A maldição, por vezes, parecia uma bênção. Não era.
Quando deu por si, pensou que não valia a pena.
Soltou-se. Soltou as amarras de medo que o prendiam à vida e pendeu para a frente. Caiu.
Não sentiu nada além do frio e do sal invadindo seus pulmões. Sorveu mais água, sôfrego.
Antes de perder a consciência, sentiu também a esperança de que a maldição morresse com ele. Morreram.
O Viajante havia aprendido: nascer amaldiçoado é morrer amaldiçoado. Sua morte, como sua vida, foi sempre em frente, sempre em frente... ao sabor das ondas.