Conto Azul

Pequeno absurdo, para Mário Quintana.

Depois de enterrados, a primeira coisa que os mortos fazem é abrir novamente os olhos. Abrem os olhos, veja bem, não por qualquer intervenção do sobrenatural sobre a carne em decomposição; abrir os olhos sob a terra é apenas uma reação natural, parte do ciclo da vida, como é nascer, reproduzir-se e morrer, que nós, vivos, desconhecemos, por não termos – com razão – o hábito de averiguar o que fazem os que já sepultamos, na terra e na memória. Abrem, pois, os olhos, aqueles que morreram – por motivos meramente naturais, como agora sabemos – para observar a decomposição do próprio corpo.

Por algum tempo, o gesto natural de querer assistir a própria decrepitude é inútil. Só o que fazem os recentemente enterrados, nas primeiras horas, é fitar resignadamente a madeira fria que tornou-se seu último abrigo – no caso, é claro, daqueles que podem se dar ao luxo de um caixão; os que, por motivos vários, são enfiados sem cerimônia na terra, fitam a terra própria, e, neste caso, a espera é mais curta, pois os vermes já lhe cobrem o corpo. Entretanto, para a sorte dos mortos, o ar já não lhes faz falta, e estão imunes ao tédio da imóvel espera – que, de qualquer forma, não é mesmo muito longa.

Algumas imprecisas horas depois das cerimônias fúnebres, o vazio do caixão começa a abrigar as pequenas formas de vida – asquerosas para os vivos, bem-vindas para os mortos – que se alimentam dos últimos resquícios que deixamos no mundo. Não são muito organizadas, essas formas de vida rastejantes, de modo que não há muita lógica na maneira como eles consomem a carne malcheirosa. Mas uma coisa é fato: por onde quer que comecem, consomem-na com rapidez impressionante e invejável.

Embora desorganizados, os vermes são criteriosos: ignoram as partes pouco saborosas – roupas, dentes, ossos, cabelos e unhas – e concentram-se naquela mais suculenta: a carne, já fria. Quando não são incomodados por necrófilos, ladrões ou necromantes, ao fim de poucos dias dão cabo do corpo que outrora abrigara sonhos e secreções.

Ao fim de todo o horrendo processo é que o ex-vivente finalmente solta seu último hipotético alento, certo, por fim, de ter cumprido seu primeiro e último feito sobre a terra – do pó ao pó.