O nostálgico singelo momento

Havia uma tristeza desajeitada ao servir-me o café. Uma tristeza absurda e fantástica. Após servir-me, piscou-me o olho e dirigiu-se (de uma forma dançante), até o aparelho de som, com passos largos e leves - como se estivesse dançando tango.

Entre pulos e sutileza endoidecida, liga o aparelho, e num súbito colérico, vira-se em minha direção. Seus olhos beijaram os meus e uma insigne louvação lúdica, me desfez em perturbação encantada. - A sublime perfeição dos atos assombrados.

Enquanto o concerto de violino emanava pela sala, Francisco arfava e comprimia os olhos, dançando livremente, num êxito assustador.

Eu olhava-o absorto, bebericando o amargo café que se esfriava a cada pausa do meu espanto. Já passava das dez da noite, e com apenas um abajur acesso a sala se traduzia em relevos e sombras. O violino rompia e dilacerava com seus acordes pungentes, Francisco dançava lunaticamente. Eu observava-o na luz clara do abajur à medida que Francisco, perante a janela do oitavo andar de seu apartamento, gesticulava saltar... dançando. Sorria ao ver o modo dos meus olhos, que clamavam por alguma resposta para a tal representação. Mudo e perplexo eu permanecia. Apenas o violino soava e estremecia o aposento. A alucinação do momento era algo tão inefável que eu me perdia em esquecimento. Uma pureza fatal.

Compreendia o fato de Francisco alucinar-se por alguns momentos. E Francisco também compreendia o meu pavor encantado. Pois havia um nuance de compreensão onírica entre eu e ele, um quase desespero ridículo. Uma oração sem fim.

- Sabe, tem uma frase que admiro “A música é um barulho que pensa” disse em um vago torpor.

- Frase interessante. Quem é o autor? Perguntei demonstrando interesse e despreocupação.

- Não lembro...

- “Ontem choveu no futuro” falei, num enlevo de louvação.

- De quem é? Perguntou-me de imediato. Com ares de superioridade.

- Poeta Manoel Barros. Respondi serenamente. Com a certeza de que Francisco divagou perante a frase argumentada. Pois Francisco era sim. Perdia-se em qualquer ingenuidade, em qualquer futilidade em que lhe diziam. Tinha como passatempo escrever frases absurdas, um tanto desmesuradas. Um escriba solitário. Francisco era sim.

Francisco contemplava a noite sem estrelas e um misto de melancolia avultava sobre a mobília exausta na eternidade. Colapsos delirantes emergiam de todos os cantos escuros, enquanto um balé sem ritmo, rodopiava na essência segredada, dos nossos súditos medos em holocausto.

- Gostou da música? Perguntou-me de costas, intranquilo.

- E da dança também. Respondi auspicioso.

- Violino sempre me desvanece em encanto... Disse Francisco a bocejar, ocultando um próximo elogio.

- Magnífico... Consenti machucado e ausente tanto quanto Francisco.

Havia algo em Francisco em que eu não conseguia decifrar, e isso tudo se diluía em nossa relação amorosa. Esse amor entre nós, tão retalhado na profana perfídia. Francisco admirava a cidade pela imensa janela. Essa cidade que adormece em suja inocência, - pensava talvez Francisco. Ódio e mistério vestiam o seu orgulho entorpecido na vã crueldade e que o mundo ficasse atônito, se ele era um daqueles que beija a face, do dito anormal, repugnante, e sai correndo, sorrindo.

Olhando para mim. Disse-me:

- Esta minha última noite com você Arthur. Devo agradecer-lhe. Pois esse nosso amor proibido já se materializou no ódio alheio. E esse fato nem o Deus mais podre e caótico consegue respirar.

Quando terminou, Francisco arfava pesadamente. Tentei agradecer em recíproca sinceridade e que não compreendia o motivo de sua despedida. Estava tudo tão amável e ninguém demonstrava esse ódio abominável que ele havia descrito com ímpeto doloroso. (Mas Francisco sentia o teor da essência alheia e suas objeções desagradáveis). Bem sei disso – pensei. Mas a sociedade é um museu de conformidade em cadeia – tentei dizer-lhe. Pois eu era professoral na tarefa de interpretar Francisco - o seus medos e suas indignações. Uma empatia desfilava nua entre nossos conceitos, quase uma devoção louca. Mas antes de argumentar todos esses sórdidos pensamentos e todas essas respostas precárias, num relance de espasmo, surto, susto, raiva, alívio, Francisco atira-se pela janela.

Atira-se para o fim. Atira-se para sempre. Um súbito vento frio adentrou e as cortinas se balançavam sem ritmo algum, enquanto seu preferido concerto de violino, que soava ao fundo da sala, tão lúgubre e intenso, velava o seu último, nostálgico singelo momento.

Duino Shackal
Enviado por Duino Shackal em 01/06/2013
Reeditado em 27/09/2013
Código do texto: T4320747
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