Adeus professor
Cheguei mais cedo à sala de aula, ainda com a faculdade toda apagada e com um único zelador que emitia um baixo ruído pelos corredores engolidos num breu. Era a sala onde ensino perícia médica, portanto era bem arejada e o mais aberta o possível por causa do mal odor dos cadáveres. Pude, então, tranquilamente acender um dos meus cigarros, as vezes, inclusive, costumo fumar enquanto dou aula.
Caminhei até a janela, passando por um corpo estirado em uma maca, descoberto, de um velho, morto recentemente. Fitava a lua que se agigantava à minha frente, tão brilhante que poderia iluminar toda aquela cidadezinha sem a ajuda de postes de luz. Comecei a desviar o olhar para o velho constante e inconscientemente, ao lado dele havia uma mesinha com rodas, tão pequena que mais parecia um criado-mudo ambulante, e sobre ela, fotografias e relatos da cena em que o corpo fora encontrado, além dos materiais cirúrgicos que ficavam em um compartimento na parte de baixo da mesma.
Puxei uma cadeira e estudava as fotos. Todas mostravam um senhor, de poucos cabelos brancos, por ser calvo, caído em uma poltrona branca da cor de seus cabelos, com uma arma pendendo de sua mão esquerda, olhos fechados e, ao que me parecia, um leve sorriso em sua face, esboçando uma sensação de bem-estar. A bala explodira em seu crânio deformando um pouco a sua orelha esquerda. Estava manchado de sangue; ele, a poltrona e as paredes e o chão estavam cheios de respingos.
Afinal quem sorrir quando vê a morte chegar? porque aquele velho a desejava tanto? era claramente um suicídio, o relógio no pulso direito confirmava a hipótese dele ser canhoto.
Tombei no encosto da cadeira e dei uma forte tragada, exalei a fumaça em um suspiro enquanto encarava o teto. Peguei uma das fotos aleatoriamente e a observava com um profundo desinteresse, a fotografia era uma reprodução do que, provavelmente, o suicida teve como ultima visão.Uma lareira, dessas que só se ver em filmes, em cima dela alguns retratos contrastavam com a parede de uma suave cor de bege. Havia um quadro maior, bem no centro, emoldurando a imagem de uma bela Senhora, e dos seus lados, quadros menores em preto e branco com varias poses do casal que morava à sois naquela casa. Então eu entendi porque aquele cara resolvera antecipar a sua partida. O quadro grande da Senhora estava rachado e os cacos de vidros refletira o flash do fotógrafo, deixando uns brilhos no chão próximo às brasas. E assim se foi, a dor cessou, nenhum bilhete deixado, pois não tinha à quem escrever, mas se fora bem, com a imagem fresca na memória daquilo que realmente importou na vida.
Joguei o resto do cigarro no chão e apaguei as cinzas com o pé. Apressei-me logo a escrever na lousa afim de aliviar a dor que guardava comigo e que há pouco tirara a vida daquele homem.
"Há quem diga que nada teme aquele que nada tem, mas não sabem que seu maior medo é um dia voltar a ter. Nada se perde por completo, nada que a memória escolha guardar, nenhum homem é capaz de escolher o que esquecer ou o que lembrar, e assim ser feito; e nem os mais fortes dos fortes deixam de sofrer. Algo sempre fica, algo sempre se guarda, algo sempre nos pertence. O problema é que a única coisa que nos sobra é justamente aquilo que não queremos ter. Ah, antes nada tivéssemos. Partiremos incompreendidos, apenas quem também escolhe nossa escolha entende, mas àqueles que não tem nada que agradeça, pois nós, que tanto temos, livrar-nos-ermos de todo o excesso que nos rasga, entretanto rasga de dentro pra fora e a ferida externa é sempre a ultima a ser vista, só se ver quando se é tarde demais."
Assim estava rabiscada a lousa, prendi à sua quina a foto que analisei e, por fim, terminei pondo minha assinatura ao final das minhas palavras impressas à giz. Escrito em letras garrafais lia-se: (Professor Melancolia). No canto daquela sala, situada no 5º andar, o mais alto da faculdade, terminei meu ultimo cigarro e corri. Corri até a outra ponta, porém não cheguei a encontrá-la. Mirei a janela e a pulei.