Apenas um vira-latas
Um vira latas
E sua epopeia para continuar vivo no mundo dos humanos.
Há uma famosa parábola de um grande padre, daqueles que são propagadores da doutrina de Cristo, que conta estar ele, um dia, tentando salvar um escorpião. No entanto, o perigoso animal insistia em mordê-lo. Alguém que o seguia perguntou por que tenta salvar alguém que o quer envenenar. A resposta está na palavras do Filho do Criador:
- A natureza dele é morder. A minha é ajudar.
Logo depois, pegou uma folha maior a seu alcance e salvou o escorpião.
Qual a razão de buscar essa bela passagem que mal sei contar? No dia 26, após o Natal, um dos meus vira-latas, abandonado em supermercado, que adora rua, resolveu, quando o fazia entrar em casa, e, levemente, o empurrei, agredir-me violentamente. As mordidas foram várias e uma delas perfurou um local crítico do braço, fazendo o sangue jorrar.
O pobre cão – pelo que ainda vi – entrou com o rabo entre as pernas em casa, onde alguém lhe quebrou nas costas uma vassoura.
Dois vizinhos maravilhosos socorreram-me. Chamaram os bombeiros; a unidade de resgate e a de assistência média. Um assunto para dias e dias para a rua. Aliás, todos diziam que o agressor era o Pingo (o outro: um bobo, grande e lindo). Mas, era o Malhado.
Depois de medicada, com vacinas e tudo mais, perguntei ao gentil bombeiro, para onde levaria o Malhado?
- Para o Hospital da Mangueira.
Três dias depois, telefonei para aquela hospital e lá dera entrada qualquer animal com as comuns características de um pobre vira-latas que, até então, embora possessivo, vivia dando seus “beijinhos”, em agradecimento por tê-lo tirado da rua.
Liguei para o bombeiro que, com uma desculpa, não crível, ainda estava com o animal no quartel. Perguntei como ele estava e para que local o levasse. Para a SUÍPA.
Mais dois dias se passaram e nada. O animal não aparecia. Finalmente, naquela tarde, o Malhado aparecera, como cachorro de rua, na instituição e eu teríamos que readotá-lo, se não quisesse que ele perecesse até depressão, entre os quatro mil que lá estão.
Perguntam muitos por que tanto trabalho por alguém que me mordeu? A resposta está no meu coração.
Fui à SUÍPA, entidade para a qual colabora, mas que não sabia como era. Não por seus funcionários. Solícitos e gentis. Mas pelo inferno em que se encontram os cerca de 4000 caninos e felinos, nos quais ainda jogam algumas bombas, segundo dizem, as “crianças” locais. O Malhado estava com a cabeça entre as patas, como dormindo, sem água, sem comida. Mais magro. Muito magro.
Nunca vi tanta alegria como quando o chamei pelo nome que lhe dei, pois não sei o verdadeiro.
Fiz todos os trâmites necessários. Até fotografia tirei, com o Malhado dando-me “beijinhos”. Onde estava o animal que mordera? Quem o maltratara, para que assim reagisse? Bem, levei-o para um Hospital próprio, sem ter como gastar mais. Foi castrado, enquanto eu apelava por quem pudesse levá-lo para uma casa. Ninguém, ou melhor, apenas uma estranha pessoa que queria levá-lo. No entanto, não fornecia o endereço. Nada. Talvez o pusesse na rua em breve.
Mesmo prorrogando a sua permanência no estabelecimento em que confiei, tive de trazê-lo para o apartamento. Não ia jogá-lo fora.
Ele veio com infecção urinária, sem quase latir, talvez pelo efeito das cordas em seu pescoço. Está mais sossegada. Bem sei que não perdeu sua natureza, mas sua docilidade junto com a do Pingo – dirão muito, apesar do perigo - aplaca a minha solidão, agora que meu filho não mais mora comigo.
Continuo minha jornada diária, não sem sacrifício, para que eles não incomodem, pois moro em apartamento.
Além do Criador, que tudo vê, comigo moram o Pingo e o estranho Malhado e um passarinho. Nos olhos deles, há vida, há afeto, para quem, por vezes, sente-se em um deserto.