ANCESTRALIDADE
Vó Bel...
Entre uma e outra cachimbada
Com as mãos nas cadeiras
E arrastando suas surradas alpargatas pelo chão...
Acercou-se de mim e me cochichou:
- Certo dia meu netin...
Tava eu passando por uma encruza
Quando avistei um pretin
Moleque-esperto e danado!
Que sem parar dançava num só pé... Numa perna só
Parecia ter folego de gato o safadin
Ô então...
Bicho-carpinteiro o neguin!
Vi aquele Erê sapateá
Deitá e rolá
Dá 33 pulin
7 mijadas
13 caretas
999 gargalhadas
Eta fio-da-puta de cabloquin!
Que não se cansava de molecá um só minutin!
Então...
A tua vó Izabel parô
Sentô...
Descansô num meio-fio
Espichô as pernas
E ficô ao pequetitin admirar
Era rabo-de-arraia pra lá...
Cambalhotas...
Estrelas e meia-lua pra cá!
Jogo-duro!
Jogo-mole!
Eta criolin travesso!
E tome rasteiras, rodopios e tudo de tipo de tombo também
De repente o Sacizinho:
Fitou Maria Izabel
Mirou-a olho-n'olho
Igual bang-bang de bandido-mocinho
Sem um tintin arredar
Sacou de seu cachimbo-torto e deu pra vovó pitar
Só rindo...
Pegou fumo-de-rolo
Pos o dela na boca e passou a cachimbar
Em meio a tanta baforadas
E fumaceira
E Pontos...
O Erezinho e a Vovó Maria Izabel começaram a relembrar
Das giras
Dos Tumbeiros
Do Atlântico-Negro!
De troços que contavam os mais-véios:
Histórias e passagens e magias e divindades...
Do agora
Do ontem
Do amanhã
Das mais remotas celebrações!
De lá...
Bem pra lá...
Lá do fundo
D’outro lado do imenso oceano...
Do comecinho de todas as coisas do mundo:
Do sobe-desce das embarcações
Do comércio dos sonhos
Da cor sublime da noite...
Dos ritos
Dores!
Das passagens de além-mar!
Vó Izabel
Então...
Debruçou-se no ouvido do netinho
Como que já quisesse descansar
Lhe passou bem baixinho a oração:
- Netin...
Netin...
Ô meu netin
Tua raiz é extensa
É profunda!
É poderosa!
Tá me escutando neguin?
Ninguém...
Ninguém pode com oce!
fique esperto!
Que a travessia é herança só tua
E o teu destino:
É suor
É vinho-tinto-doce que todos precisam beber!