ENTREVISTA COM O CORAÇÃO

ENTREVISTA COM O CORAÇÃO

Um dia olhei pela fresta da janela, e lá encontrei um coração solitário, que, embora comunicativo era ao mesmo tempo por vezes tão tímido que assustava-se – uma de suas muitas contradições, aliás. Bem devagar, com cuidado, fui ao seu encontro. Era tão pacífico que a menor violência o transtornava. Sensível e leal, jamais esquecia-se de quem o cativava, e o mínimo gesto ou surpresa carinhosa o deixava todo emocionado.

Era aberto e partidário da democracia, mas isso não quer dizer que não tivesse suas preferências. Nele cabiam todo tipo de gente, mas, principalmente, idealistas, pacifistas, feministas, artistas, sonhadores(as), pensadores(as), freiras autenticas, prostitutas, ateus éticos, anti-racistas, anti-homofóbicos, pessoas na luta contra todos os preconceitos e por um mundo melhor, excêntricos, diferentes, originais, solteironas, velhos e velhas maduros e tolerantes, santas/os e místicas/os que não fossem chatos e obtusos, e toda sorte de pessoas solitárias ou marginalizadas, perseguidas, feridas, fragilizadas, caídas, cansadas, despedaçadas, humilhadas, exploradas... Desejava amar a todos os seres humanos que encontrasse pela frente, mas com alguns, como os soberbos, os ignorantes e preconceituosos, que se achavam superiores a outras pessoas por algum motivo, tinha algumas dificuldades. Não desejava mal a essas pessoas e pedia ao Deus/Amor por suas mentes e corações, mas não sabia como lidar com elas, pois as ideias e atitudes que sustentavam eram a causa das maiores barbaridades que via no planeta, e isso o feria em suas entranhas.

Fraterno, apaixonado pela liberdade e amizade, inconformado com a desigualdade, ingênuo arauto buscador da verdade (que tantos lhe diziam ser quase sempre impossível encontrar), incansável cultivador da consciência lúcida e incorrigível defensor da solidariedade, da justiça, da compaixão e da misericórdia, ficava horrorizado, desconcertado, com a crueldade, arrogância e sarcasmo de tantos outros corações. Chegava até a adoecer com muito do que via ao seu redor. Percebi (apesar dele não me dizer), que sua visão ia muito além de sua pequena capacidade de suportá-la, e que esta era a sua cruz.

Certa vez, após muito conversar, finalmente admitiu ser artista. Sim, um legítimo coração artista e pensante. Prova disso, era que vivia teimando em olhar para onde ninguém olha, em voar por onde ninguém voa, e em ser coerente consigo mesmo, o que, trocando em miúdos, significava ser muitas coisas, menos o que todo mundo é. Contou-me também, que era metade doce, metade salgado, metade pavê de chocolate, metade pizza quatro queijos, com algumas pitadas de pimenta também, e um pouco azedinho em raras vezes. Porém, nada amargo.

Reparei em seu tamanho minúsculo e em seu jeito um tanto frágil, desajeitado, medroso... Ele me confirmou que tinha mesmo seus medos e fantasmas, sendo alguns anões, mas outros por vezes tão gigantes que o apavoravam. Confessou-me, além disso, que não era puro nem completamente impuro, assim como também não era alegre nem completamente triste. Tinha suas manchas, suas rugas, suas chagas e angústias, sua cota de rejeições e suas fomes e solidões, mas também suas alegrias, belas lembranças e instantes inesquecíveis, bem como sua gente amiga, que ele chamava de "seus amores".

Disse-me, entre sorrisos, que não era órfão e que tinha um/a Deus e uma Rainha por quem não parava de bater. Por último, assumiu divertido não ser forte nem valente, mas ter certa ousadia, já que quase sempre fazia o que bem entendia, sem obedecer sua dona.

Foi aí que lembrei de perguntar de quem esta se tratava, e acabei levando o maior susto... Ele respondeu com um olhar espantado, que nunca mais esqueci: "Você, é claro! Não sabia ?!"