ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (94)
ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (94)
Rangel Alves da Costa*
Já menos surpreendida, porém sem ainda saber nada daquilo que acontecia, a bela solitária caminhou casa adentro tateando as coisas, tocando em tudo para ver se realmente era verdade o que os seus olhos viam, o seu nariz sentia, o seu senso tinha de apreciar.
Quando não teve mais como duvidar de nada, se deu conta de outra situação intrigante: quem teria feito aquilo, como e por quê? Correu a entrar pelas dependências, a olhar pelos cantos, por debaixo das camas, até dentro de um velho baú, e tudo no intuito de saber se alguém havia chegado enquanto dormia e estava por ali escondido.
Fez o mesmo no quintal, ao redor da casa e mais adiante, indo mesmo até perto da mataria. Por ali não restou um só lugar que ela não procurasse, olhasse, futucasse. Cada vez mais intrigada, o passo seguinte foi começar a gritar perguntando se havia alguém ali, onde estava, que aparecesse.
Não obtendo qualquer resposta, entrou em casa novamente e foi até o quarto de sua mãe para fazer uma oração aos pés do oratório. E só esse fato já trazia uma significativa mudança nos seus modos de agir, pois já desde muitos meses que nem lembrava se existia santo, oratório ou nada que merecesse uma prece. Talvez até as orações já estivessem esquecidas.
Mas não, pois sabia muito bem o que queria rezar e rezou ajoelhada, ao lado da vela que também já estava ali acesa. Antes era apenas uma inteira flamejante, agora duas fulgurando ao lado do pequeno templo de madeira de lei e iluminando belamente o interior do aposento. Dentro do oratório as imagens pareciam sorridentes, alegres, vivazes.
Após a prece, invocou o nome do Senhor, dos santos, do seu anjo da guarda e começou a pedir, com uma força inabalável no recôndito do espírito, que o luzir das velas também a iluminassem, de modo a não permanecer mais envolvida em meio a tantos mistérios inexplicáveis e tormentosos, implorando ainda que lhe fosse permitido tomar conhecimento, ao menos por sinais, sobre quem havia feito aquela mudança toda na sua casa.
E nesse passo outra sensível mudança na vida de Crisosta. Após anos, somente agora parecia agir como ser humano normal, preocupada com coisas e fatos, agindo conscientemente, colocando sentido naquilo que pensava e dizia. Acaso permanecesse assim, logo daria um rumo na vida e faria suas próprias escolhas para seguir adiante. Num estado de consciência, de compreensão da realidade, até mesmo a opção pela solidão e o sofrimento seriam aceitáveis.
Enquanto ainda rezava, conversava com Deus, santos e anjos, sentiu como se algo estivesse acontecendo na sala ao lado, logo após a porta do quarto. Não ouviu qualquer barulho, qualquer passo ou pisada, mas tinha certeza que precisava ir até lá verificar o que estava ocorrendo, pois não duvidava que algo estranho seria encontrado. Por isso mesmo, reforçou seus pedidos de proteção e decidida levantou apressada. E foi até a sala.
Assim que colocou o primeiro pé no aposento ouviu um som de asas batendo, olhou na direção e apenas pôde enxergar uma miragem de duas asas de brancura incandescente e que já se dispersavam, voavam, desapareciam. Baixou o olhar e por cima da mesa avistou um pão dentro de um dos pratos de alumínio que tinha na cozinha. O alimento dentro da vasilha limpinha chegava a refletir os raios vindos de fora e formar algo como uma auréola luminosa.
E não somente isto, pois ao lado do pão estava uma Bíblia, que outra não era senão o seu próprio livro sagrado, trazido de seu quarto e ali colocada fechada, tendo precisamente a ponta de uma pena como marcador para uma leitura específica: Levítico 26. Logo lançou o olhar e começou a ler vagarosamente o seguinte trecho, pois destacado do restante:
“(...) Se seguirdes minhas leis e guardardes os meus preceitos e os praticardes, eu vos darei as chuvas nos seus tempos. 4. A terra dará o seu produto e as árvores da terra se carregarão de frutos. 5. A debulha do trigo prolongar-se-á até a vindima, e a vindima até a sementeira; comereis o vosso pão à saciedade, e habitareis em segurança na vossa terra. 6. Darei paz à vossa terra, e vosso sono não será perturbado. Afastarei da terra os animais nocivos, e a espada não passará pela vossa terra. 7. Quando perseguirdes os vossos inimigos, cairão sob vossa espada. 8. Cinco dentre vós perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, e os vossos inimigos cairão sob vossa espada. 9. Eu me voltarei para vós, e vos farei crescer; multiplicar-vos-ei e ratificarei a minha aliança convosco. 10. Comereis as colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar lugar às novas. 11. Porei o meu tabernáculo no meio de vós, e a minha alma não vos rejeitará. 12. Andarei entre vós: serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo. 13. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito para livrar-vos da escravidão. Quebrei as cadeias de vosso jugo, e vos fiz andar com a cabeça erguida...”.
Não pôde deixar de perceber que grafado com maior destaque estava: “A debulha do trigo prolongar-se-á até a vindima, e a vindima até a sementeira; comereis o vosso pão à saciedade, e habitareis em segurança na vossa terra”.
Continua...
Poeta e cronista
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