O fim do baile

Neste dia, Ubirajara tava como nos outros dias desta nova etapa de sua vida.

No lugar, o Paraíso, tomava seu banho diário de sol, e bebendo “aquela” limonada, pensava na vida. Pensava em como todos os seus pedidos foram atendidos, exatamente como ele queria que fosse.

Pediu ser índio, ter a vida inteira de liberdade, e no mato viver em paz, sem as loucuras da vida do “homem branco”, sem as neuroses do dia a dia da sociedade capitalista, sem trânsito, poluição, violência, política. Sem ter a obrigação de votar. Queria viver um eterno sonho de menino, e correr por aí, nadar nos rios limpos, e caçar. Queria ter a sensação do suor da sua pele se misturar com as tintas preparadas com as plantas, com o urucum. Queria viver pintado de verde e se confundir com a mata. Brincar com os animais, e fazer da onça um bichinho de estimação, e após comer uma saborosa graviola, dormir nas copas das árvores feito bicho preguiça.

O pajé ensinara as danças religiosas, e a pescar e caçar. Ubirajara adorava brincar no rio, bem perto dos jacarés e piranhas. Conhecia muito bem a terra, e a água, e tudo que nelas há.

Quando sua mãe precisava de alguma coisa, lá ia ele se embrenhar no meio da mata para buscar. As ervas para as infusões ele sabia muito bem onde encontrar, e conhecia uma variedade enorme de plantas. Era assim sua vida.

Mas neste dia, justamente neste dia Ubirajara apenas pensava. E quanto mais pensava em tudo que já havia vivido, mas tinha a certeza da felicidade. Num momento, lembrou então, do que mais gostava de fazer. Gostava de dançar. Achava maravilhoso o movimento do corpo e a sintonia que havia entre os passos das danças, os rituais e as músicas e cânticos de seu povo. Sempre que havia algum festejo, ele era o primeiro a se preparar e ficava numa terrível ansiedade até que fosse chegada a hora.

- Pequeno Ubirajara, senhor da lança! Logo ser seu ritual de caçador.

- Já sou quase grande! Quero sair pra caçar com os outros!

- Menino índio precisa antes passar pelo ritual do crescimento. É tradição da nossa tribo, e todos os homens tornam-se caçadores só depois que passar pelo ritual. Você precisa se purificar e daqui a três luas faremos sua iniciação.

- Ubirajara agradece pajé! Fica muito feliz!

A purificação nada mais era do que jejum total. Sem dormir por três luas, Ubirajara levanta cedo de sua rede, e se prepara para a festividade. Numa oca com outros dois índios adultos o senhor das lanças aguarda ansioso. A espera nunca o deixou tão excitado, e nem lembrava do jejum. Como todos os índios, ele era muito paciente, e parecia bem calmo no aguardo de seu pai, o índio Cauré. Cauré era um dos melhores caçadores da tribo. Sempre que havia um pequeno índio para passar pela iniciação, era ele quem era o responsável por toda a preparação que antecedia o ritual. Agora chegara a vez de seu filho. As tintas preparadas com plantas, que seriam usadas na pintura do corpo dos pequenos, só Cauré que preparava corretamente.

- Pequeno Ubirajara pode ficar de pé, que índio pai vai pintar primeiro a pernas e depois barriga, peito, costas e cara.

Cauré sempre fora um homem com feição muito séria e quase nunca sorria.

Os outros dois índios estavam ali pra ajudar Cauré na preparação de Ubirajara. Enquanto iam macetando algumas plantas preparando cores diversas, Cauré conversava com o filho.

- Menino índio tomou o chá que o pajé pediu?

- Ubirajara tomou sim Cauré. Nas três luas Ubirajara tomou antes de deitar na rede, mas Ubirajara não conseguiu dormir direito.

- Ubirajara não ia dormir mesmo. Chá de pajé, muito forte. Nem os maiores conseguem. Pajé prepara o chá, porque serve pra ver resistência do pequeno índio. Mas ele também é bom pra curar cegueira.

- Cauré já tomou?

- Já. Cauré tomou pra poder fazer primeira caçada, como Ubirajara. Depois Cauré não tomou mais.

Enquanto traçava as linhas dos desenhos sagrados no corpo de Ubirajara, Cauré continuou a conversa:

- Quando terminar, Cauré vai levar pequeno índio pra lugar sagrado.

- Que lugar é esse?

- É o Esconderijo Sagrado da Aldeia Pedra Mole

- E o que tem lá.

- Não pode falar. Só ver. Quando pequeno índio chegar lá vai saber o que vai fazer.

Todos os índios da aldeia Pedra Mole, estão na festividade de iniciação. Como é um momento especial, todas as crianças da tribo com a mesma idade de Ubirajara, vão passar pelo ritual.

As crianças estão dispostas em duas filas posicionadas lado a lado. Os pequeninos ficam um de frente pro outro, formando pares. A idade aproximada é de 10 anos, e a tradição diz que por volta dessa idade todos os meninos devem se tornar aprendizes de caçadores e pescadores.

O pajé começa um cântico em compasso acelerado, e depois segue mais pausadamente. Repete o “mantra” repedidas vezes, até que as filas se afastam. Quando isso ocorre, os adultos entoam o cântico juntamente com o pajé, e aí as crianças formam um círculo, e começam a dançar, movimentando o círculo sempre no sentido horário. A iniciação dos pequeninos é simples, a dança começa sempre no fim da tarde, e ao por do sol é encerrada. Quando vem a escuridão, acontece o processo de transformação. É neste momento que os deuses aprovam a “formatura” dos indiozinhos em aprendizes de guerreiros.

Não era difícil perceber a alegria dos indiozinhos no momento mais importante de suas vidas, e em especial, Ubirajara, que passava por esse momento, fazendo o que mais gostava. Dançando.

Apesar da ansiedade de se tornar um pequeno guerreiro, Ubirajara gostava da vida que levava enquanto criança. Suas aventuras eram o que mais lhe trazia alegria, além da dança.

Pensando nestas aventuras, e já respirando ares de guerreiro, perguntou ao pai:

- Cauré não via levar Ubirajara ao esconderijo sagrado?

- Cauré vai levar pequeno índio amanhã, junto com os outros pequenos.

Era uma caverna afastada da tribo, mas não muito distante. Não era preciso nem atravessar o grande rio.

Ao chegarem então ao local, todos permaneciam atônitos com a grandiosidade do portal de entrada da caverna. Era um lugar que chamava muito a atenção. Centralizada sobre o arco formado na entrada da caverna, havia uma rocha em forma de cobra.

Quando os olhos de Ubirajara fitaram aquela imagem, o pequeno índio sentiu um frio na barriga, mas o desejo de se tornar guerreiro, era muito mais forte. Ao ultrapassarem os limites do portal, foram prevenidos:

- Vocês vão dormir aqui esta noite. Amanhã, levantem com os raios de sol, e voltem para a aldeia sozinhos. A iniciação estará completa, e aí serão guerreiros de verdade.

Voltando-se para o portal, Cauré saiu em direção à aldeia. E já saindo, deu a última instrução:

- Sigam em direção à luz. – Foram suas últimas palavras, antes de desaparecer na mata, sem se despedir.

Então, os pequeninos ficaram e logo foram percorrer pelas salas da caverna. Todos caminhavam juntos, porém, não trocavam nenhuma palavra. Apenas admiravam as formas que iam surgindo diante de seus olhos, guiados por uma luz natural que vinha do fundo de uma das salas daquele lugar. Continuaram seguindo e encontraram à frente um enorme espaço sem teto, de onde vinham os últimos raios de sol daquele dia. Era como se fosse uma cratera, um enorme buraco, rodeado por paredes imensas, que aparentavam ser impossíveis de serem escaladas. Então os pequeninos perceberam que dali só poderiam sair pelo mesmo lugar que entraram. Não havia saída. Ubirajara, então, entendeu o significado daquilo tudo. Como havia apenas algumas pedras compridas no chão, percebeu que era ali que os pequenos guerreiros descansariam, e quando acordassem, estariam entrando em uma nova etapa de suas vidas. A mensagem que lhe ocorreu, fora a de que aquele lugar era mágico, e que ali receberiam o banho de sol necessário para o “batismo” completo. Havia exatamente o mesmo número de pedras espalhadas pelo chão, cada menino escolheu a sua, e deitou para dormir. Por um momento, Ubirajara pensou que não conseguiria dormir, devido todas as outras noites de preparação. Estava tão cansado que não conseguia relaxar, mas logo pegou no sono.

No outro dia, ao chegar à aldeia, Ubirajara fora recebido por Cauré:

- Pequeno Ubirajara, agora já é guerreiro. Agora vai usar arco que foi de avô de Cauré.

E então uma grande veio ao rosto de Ubirajara, representada por um enorme sorriso.

O tempo passou e Ubirajara seguiu sua vida normalmente. A rotina pacata da aldeia, e suas atividades como guerreiro, fizeram com que Ubirajara se transformasse num índio muito respeitado na tribo. Constituiu família e teve três filhos homens, que seu pai Cauré também “iniciou”.

O homem branco começou suas investidas na região em que era localizada a aldeia de Pedra Mole. Ali havia uma grande montanha de minério, que seria explorada para extração de bauxita. E as caçadas não eram mais as mesmas.

No primeiro dia da primavera, Ubirajara saiu pra caçar e encontrou uma paca no mato. Ao tentar capturar o animal, aproximou-se muito do pedaço de terra que estava sendo explorado pela empresa mineradora, e sofreu um grave acidente. Ao passar próximo de um local que havia sido desmatado, não percebeu a ação do homem branco, que justamente naquele momento estavam explodindo o local com dinamite. Não foi socorrido no momento. Apenas 42 horas após o acidente. É que ele conseguiu chegar sozinho na aldeia Pedra Mole, e ser socorrido pelo pajé.

Depois de muito esforço e várias tentativas frustradas de cura por parte dos outros índios, Ubirajara morreu.

O cortejo de Ubirajara foi um evento inesquecível, pois ninguém, nenhum guerreiro daquela tribo havia morrido em batalha. Ubirajara fora o único. Foi enterrado segurando o arco que seu pai havia lhe dado lá no esconderijo sagrado, com honras de mártir.

Ninguém esqueceria do menino que queria ser guerreiro, mas que não queria deixar de ser criança.

Quando chegou ao paraíso teria que escolher: voltar a ser um pequeno indiozinho, ou ser transformado em homem branco, para que pudesse conhecer completamente as agruras dessa gente.

Acabou sendo mais uma vez atendido por Deus. E que bom não conviver com as loucuras de ser homem branco, com os problemas do dia a dia e suas neuroses.

Não queria sentir-se culpado de acabar com a felicidade de ser uma eterna criança.