ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (65)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (65)

Rangel Alves da Costa*

Crisosta deitou cedo. Após caminhar um pouquinho ao redor da casa, apreciando as belezas da noite agrestina, resolveu se recolher bem antes do horário normal. E normal por ali era sempre quando a escuridão caía de vez e os bichos deixavam de barulhar dentro da mataria.

Os bichos também procuravam suas tocas, suas locas de pedras, suas camas de capim para descansar. Quando o barulho próprio que faziam durante todo o dia começava a arrefecer, então era sinal de que já estava na hora de fechar a porta da casa para deitar.

Mas nem sempre era assim não. Em muitas daquelas casinhas que se espalhavam agreste adentro, nas longínquas distâncias do deus-dará, os vizinhos mais próximos costumam se reunir defronte às moradias, e sentados nos troncos de paus, em banquinhos ou tamboretes, proseavam até mais tarde, cantarolavam modinhas, experimentavam o dedilhar na viola ou o passeio desafinado na sanfona.

De vez em quando, uma voz cortava o negrume e era espalhada pelo vento: “Linda noite de luar, noite de amor pra tanto amar. Mas quem sente a dor que sinto, derramado vinho tinto feito sangue a se espalhar, chora no meio da noite, sem ter amor, só ter penar. Venha lua me afagar, venha lua cochichar que há esperança na vida, que vai curar essa ferida e fazer me apaixonar...”.

Nesses momentos, quando providencialmente tinha porque cuidadosamente guardada no cantinho do armário, o copo de pinga era passado de boca em boca, talagando a vida, fazendo esquecer por instantes os tantos dissabores por ali vividos. E depois os beiços se lambem e se enchem de vontade de querer mais. Mas se contenta com duas, pois amanhã é dia de trabalho duro.

Mas não só a pinga da boa, branquinha de engenho não. De vez em quando se faz verdadeira festa. E chega a xícara de café quentinho, o pedaço de bolo de leite ou de macaxeira, a novidade saborosa que a comadre preparou com tanto gosto e carinho. É sempre de grande valia o prazer de poder viver esses momentos, essa amizade tão necessária nas lonjuras do mundo, debaixo da planta dos pés de tantos desvalidos.

Noutras casas, a porta também é fechada mas os candeeiros lá dentro continuam crepitando, as pessoas acordadas e os últimos afazeres do dia ainda ganhando força. A velha senhora, quase sem enxergar o buraco da agulha, tenta a todo custo remendar os fundilhos da calça já imprestável do marido. Outra debulha feijão de corda, bota o feijão fradinho de molho, rala logo o milho seco para o cuscuz de cedinho.

Os afazeres do homem sertanejo, ainda que de porta fechada, continuam sendo uma extensão do seu cotidiano de gente de toda sina, de vaqueiro, de trabalhador braçal, de cultivador da própria lavoura, de um faz-de-tudo para sobreviver. Por isso mesmo aproveita a noite fechada para amolar o facão, a foice, a enxada; passa óleo de coco no alforje e no gibão, sacode o chapéu de couro, conserta o estribo, faz raspagem no berrante, carrega a espingarda, coloca fumo num embrulhinho como oferenda pra caipora.

É um perigo entrar na mata tendo esquecido de levar o precioso presentinho para os seres protetores da mata. Quem tem pinga leva uma garrafinha de pinga e deixa por cima da pedra, mas quem for caçar não pode esquecer o pacotinho de fumo de jeito nenhum.

Se a caipora se der conta do esquecimento, coisa boa não vai acontecer com o caçador. Ou ele se perde na mata, ou não consegue avistar qualquer caça, ou ainda toma uma surra das boas. E apanha de chorar e ficar todo lanhado sem ao menos saber quem está lhe maltratando. É o encantamento do ser encantado...

Mas ainda que fique até um pouco mais tarde, o agrestino é um povo que deita antes da meia-noite, sempre. Por volta das quatro da manhã, ou mesmo bem antes disso, o homem e a mulher já estão de pé preparando o café, ajeitando as coisas para o dia inteiro de durezas. Quando abrem a porta ainda está um tanto escurecido, mas logo virá a cor mais bonita do mundo, cor da manhã sertaneja.

E Crisosta deitou na rede cedo. E também cedo ouviu um barulho na porta. Era como se uma pedra tivesse sido jogada. Esperou o barulho se repetir, coisa que não aconteceu. E não se repetiria porque não havia mais de uma pedra a ser jogada. Apenas uma. E aquela pedrinha.

Mas quem teria arremessado aquela pedrinha na porta, e logo o seu pequeno objeto de devoção e que pensava estar com seu irmão?

Continua...

Poeta e cronista

e-mail: rac3478@hotmail.com

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