ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (64)
ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (64)
Rangel Alves da Costa*
Talvez a prece, o pedido feito, houvesse realmente lhe fortalecido o espírito. Num estado de calma e tranquilidade, mais voltada para si mesma e dando mais importância ao mundo ao redor, dois meses se passaram sem que ela mostrasse preocupação com o sumiço das plantas, com o desaparecimento do seu pequeno jardim de sepultura.
Pensou mesmo em mandar consertar o velho carro de boi, transformá-lo talvez em uma carroça, arranjar algum burro bom e atrelá-lo para sair pelas estradas fazendo visitas aos moradores das proximidades. Ficou pensando nisso seriamente, mas decidindo que chegaria o tempo certo de colocar tal ideia em prática.
E seria muito bom que fizesse isso mesmo. Nada melhor que logo ao alvorecer montasse na sua carroça para dar voltas pelas redondezas. Poderia transportar o que quisesse, fazer tudo mais rápido, até visitar a cidade se algum dia resolvesse enfrentar tal empreitada. Como a carroça é o carro da terra agrestina, então poderia se considerar possuidora de um.
Contudo, nem se imagine que tenha havido uma grande e verdadeira transformação em Crisosta. Permanecer nesse estágio atual, de possível contentamento, exigia dela um esforço terrificante. Forçadamente colocada numa fronteira, tinha que ser manter a todo custo no lado que era menos doloroso estar.
Mas nada fácil. Precisava de muito esforço e sacrifício para continuar assim. Nada daquilo que lhe causava tanto tormento havia ido embora, se dissipado de vez. Continuava triste e amargurada pela solidão, pela falta da palavra, pela ausência de alguém por ali. Causava-lhe um redemoinho por dentro continuar vivendo o mesmo dia com a mesma noite.
E também ainda marcada pela morte dos seus familiares e do amiguinho caçador. Incrível, a morte: quanto mais o tempo passa mas ela se firma na presença. E quando há amor pelos entes perdidos, como era o caso, então se torna verdadeira companhia. A solidão traz a recordação, o silêncio traz a voz, a saudade insiste em trazer tudo de volta.
Também não podia esquecer o episódio envolvendo as flores da sepultura, a pequena cova mudada de lugar, o seu vulnerável jardim de pé de parede e um monte de outras coisas. Como ainda surgia dolorosamente o reflexo da flor diante do olhar, da flor morta, da flor ausente, da flor sumida.
Crisosta não sabia disso, mas certa vez um bardo celta, desses poetas barbudos que andam cantando as dores e os sofrimentos em meio às brumas, dizia por onde passava: Se a flor morre num jardim, a flor morre em mim. Mas não é a flor que desaparece da luz do dia nem da sombra da noite. Ela continua presença, e assim continuará para o sempre. Mas sou eu que morro, como faz o jardim silenciosamente antes de mim, para que a flor permaneça sobre o meu corpo desfalecido e depois sobre a minha eterna sepultura...
E ainda dizia o poeta: A morte de uma flor é a maior morte de todas as mortes. A pétala do homem é a sua própria idade, o viço do homem é a força do seu olhar, o perfume do homem é a sua jovialidade. Diferentemente da flor, tudo vai morrendo aos poucos, com o tempo, com a idade. E quando falece de vez é porque já morreu em partes, parte a parte num desenlace de cada dia e cada segundo. E a flor morre de vez. Por ser fulminância no jardim, quando ela está pendida, murcha ou arrancada, então os deuses devem chorar seu pranto. E um pranto tão profundo que as tempestades surgem para o homem pensar que apenas chove torrencialmente. Mas não. Foi a morte da flor, foi a morte da flor, foi a morte da flor...
Desse modo, por mais que tentasse não conseguia tirar do pensamento, e de uma vez por todas, nada disso. Apenas procurava se manter guardando essas coisas num baú dentro de si. E com a ventania própria soprada pela natureza humana, de vez em quanto a tampa desse esconderijo quase se abria e fazia surgir pontinhas dolorosas desses sofrimentos. E para vencer as tentações do sofrer, que eram tantas, fingia sempre esse lado obscuro, permanecendo firme na sua obstinação de reencontrar a felicidade.
Mas eis que um episódio a fez fraquejar de forma medonha e pavorosa.
Continua...
Poeta e cronista
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