ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (39)
ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (39)
Rangel Alves da Costa*
A decisão de partir havia se transformado em aceitação da realidade. Era dali, havia nascido ali, não havia quem tomasse conta da pouca herança deixada por seus pais, então era ali mesmo que tinha de ficar.
Sempre na esperança de dias melhores, quando a saudade e o entristecimento começavam a chegar logo procurava fazer alguma coisa para espantar os angustiantes pensamentos. Mas fazer o que naquele fim de mundo, naquela terra esturricada que a qualquer momento incendiaria de vez?
A seca continuava impiedosa, valente, assustadora, destruidora de tudo. Certo dia aquele bom homem que a havia ajudado tanto nos momentos mais difíceis, bateu-lhe à porta para falar em despedida, dizer que tinha aguentado o possível mas que agora já havia chegado ao limite. Estava indo embora com a família pra só Deus sabe onde.
Pediu por tudo na vida que ela tomasse cuidado em continuar ali. Disse que era temeroso demais para uma mocinha ficar sozinha dentro de uma casa naquelas brenhas do mundo. Perigoso porque o povo já estava entrando à força no comércio da cidade pra levar a comida que encontrasse.
A fome estava tão feia que saqueavam tudo, levavam nas costas até saco de arroz que encontrassem. Contava-se sobre um morto de morte morrida, com as próprias mãos, tendo coragem para apontar uma espingarda em direção ao próprio peito e apertar o gatilho. E tudo porque não suportou o filhinho comendo mingau de terra com lama. Desse mesmo jeito o homem contou.
E disse ainda que o povo faminto também é perigoso demais. Quem é beato vira ladrão de uma hora pra outra pra matar a fome dos seus, quem nunca pegou em nada que é dos outros se via em tempo de fazer besteira. Ele próprio viu abismado, porém não pôde fazer nada quando entraram no seu terreninho e mataram a única vaquinha magra que restava. Ali mesmo dividiram os ossos e levaram pra panela.
Por isso mesmo que tivesse muito cuidado, disse o homem. E completou afirmando que se ela sentisse que a situação ia ficar mesmo insuportável que fechasse janela e porta e fosse morar na cidade por uns tempos. Quando o tempo melhorasse, voltasse a chover, talvez pudesse retornar e encontrar ainda a casa em pé.
Crisosta quase não encontra palavras nem para se despedir nem para dizer qualquer coisa. Uma pessoa tão boa igual aquela, vizinho tão prestativo, e agora tendo que deixar seu recanto desse jeito, era doloroso demais para se expressar com palavras. Não haveria mesmo o que dizer diante de uma situação tão extremada.
Ainda bem que o homem compreendeu a voz de seus olhos cheios de lágrimas e de sua boca trêmula e não procurou se demorar. Virou-se na curva da estrada para o último aceno e a avistou num pranto agonizante. Recostada à moradia, com o braço separando a cabeça da parede, parecia menina desconsolada quando a mãe lhe nega vestido bonito de chita. Mas era a vida que estava negando naquele momento.
Quase não dorme pensando no amigo viajando sem destino com a família e aquela casinha agora abandonada. Coisa mais triste é moradia abandonada, com a ventania fazendo festa, batendo sempre à porta até abri-la. E quando ela escancara é que a tristeza aumenta ainda mais, pois tudo vazio, silencioso, sem voz alguma que fale um bom dia ou boa tarde. Boa noite, senhora dona da casa! Nem isso mais.
Acordou cedinho, olhou na barra do horizonte e já naquela hora tudo parecia que ia encardir. Era o calor abrindo as portas do tempo para o sol chegar com sua fúria desumana. E disse a si mesma que mais um dia e o mesmo dia, sempre o mesmo dia de sempre, de sofrimento e desilusão.
O pior que o dia ali parecia ser uma semana, quase um mês inteiro, sem ter roça pra plantar, sem ter água pra molhar um jardim de roseiras matutas, sem um verde qualquer na mata para alegrar coração. E quanto mais o dia se alongava mais o pensamento torturava trazendo indesejáveis recordações.
Lembrou do menino. Não lembrou, pois o mesmo não saía do seu pensamento, mas apenas foi despertada por uma vontade maior de visitar o seu túmulo de chão e mato naquele dia. E não apenas isto, mas também ver se reencontrava o cachorro que havia sumido de vez.
Não imaginava o que encontraria nessa visita.
Continua...
Poeta e cronista
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