ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (37)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (37)

Rangel Alves da Costa*

Mesmo sem calendário ou relógio que marcasse qualquer coisa, mesmo sem nada que contasse o tempo, verdade é que se passaram muitos dias desde o enterro do menino caçador de passarinhos.

Por muitos dias seguidos a mata parecia desabitada, silenciosa demais, como se o véu do luto e da tristeza ainda estivesse encobrindo os animais. Não só os bichos, mas também as plantas secas, os galhos quebradiços, o chão ardente, as pedras chorosas por dentro.

Talvez os seres encantados das matas também estivessem se eximindo de praticar reinações, espantar os caçadores, cobrar oferendas para adentrar naquele reino. Quando do sepultamento, um velho sertanejo falou baixinho, um tanto amedrontado, que sentia a presença ali da caipora e da mula-sem-cabeça. Será que o menino era amigo até desses encantados?

Verdade é que toda aquela região agrestina ficou num luto só, num sofrimento tão duradouro que até parecia a perda do olho direito do mundo. Pelas matarias, nos rincões distantes, nos casebres de beira de estrada e de cafundó, chegavam a dizer ter visto o vulto do menino correndo de peteca na mão.

Uma velha, carregando nas costas e nas rugas as experiências de muitos anos, certa manhã chamou seu velho num canto e segredou que precisava urgentemente chamar as vizinhas para uma ladainha em louvor ao Santo Pai dos Injustiçados. E tinha de fazer isso o mais rapidamente possível.

Eis que havia sonhado com o menino e ele pedia reza para limpar o nome de seus pais da culpa pela sua morte. Com a ladainha, o pecado que a eles estava sendo imputado logo seria relevado na mentes das pessoas maldosas. Os pais foram embora simplesmente porque não tinham mais nem como nem onde ficar, mas não que tivessem abandonado o filho.

Em sonhos disse o menino que havia se escondido nas matas para que não fosse encontrado. Não queria deixar aquele lugar de jeito nenhum. Os seus pais até que viraram moita e descampado, procuram em lajedo e em buraco, mas ele continuava escondido por conta própria, fazendo tudo para não viajar.

Os seus pais só subiram no pau de arara, naquele cruel caminhão de retirantes porque não havia mais o que fazer. Por isso mesmo é que o povo não podia continuar jogando por cima deles todos os pecados do mundo. E a ladainha seria mais necessária ainda porque logo o seu pai retornaria ali para buscar o filho. Não encontraria mais, e ninguém sabia das consequências da revolta do povo.

Lembraram de mandar convidar Crisosta para o ofício religioso, mas esta parecia nrm ter ouvido o mensageiro. Parecia mesmo estar noutro mundo. Não expressava mais nenhum sentimento na feição. Por dentro uma chaga aberta, um rio de sofrimento inundando tudo. Mas por cima apenas a pedra, o rochedo, parecendo inatacável por qualquer coisa.

Havia sido sofrimento demais em tão pouco tempo, muitas mortes, a família dizimada, o seu amiguinho sumindo daquela forma tão absurda, a desesperança em tudo. Por não sentir mais nenhum motivo para alegria ou felicidade, fechou-se de vez em si mesma, optou pelo silêncio sepulcral e pela certeza de nada mais esperar.

Olhos com brilho de alumínio, sangue cimentado, pele de rochedo, boca sem quase nenhuma valia. No coração ainda um coração, um peito sofrido, uma dolorosa existência. No coração ainda o sentimento da vida e da morte, a desesperança e a agonia, porém tudo ali depositado num vazio imenso e profundo.

Não havia mais sorriso para a manhã, para a revoada, para a festa da natureza, para o agrado do cachorro. Não se alegrava com nada, não sentia boa sensação por nada que imaginasse. Tanto fazia o passarinho pousar no seu ombro, encontrar uma flor de campo perdida em meios aos escombros da seca, ter ou não um sonho bom.

Tudo era muito triste, muito difícil, sempre desolador. E teve um pensamento mais que estranho. Repentinamente decidiu fechar as portas e as janelas de casa e sair pelo mundo somente com a roupa do corpo, tal qual retirante desnorteada.

Estava mesmo disposta a isso, a seguir sem destino pelo mundo naquele mesmo momento. Não via mais qualquer motivo para continuar ali, para permanecer naquele sofrimento e naquela solidão, vivendo instantes que lhe consumia por dentro.

Estava mesmo disposta a botar o pé na estrada, a abrir caminho, a ser e ter o que Deus quisesse. Mas eis que uma vela foi acesa. Acenderam uma vela aos pés do oratório. Inesperada chama, vontade de luz que não era dela.

Continua...

Poeta e cronista

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