ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (10)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (10)

Rangel Alves da Costa*

Depois da partida, passou-se mais de seis meses sem o rapazinho mandar notícias. Na verdade, havia providenciado o envio de apenas um curto bilhete. Assunto dele, mas escrito por outra pessoa. Tinha frequentado pouco a escola.

Não dizia onde estava, apenas que era longe e trabalhando de servente de pedreiro. Dizia ainda que estava com muita saudade de todos e que brevemente pensaria em voltar, assim que as coisas melhorassem para os lados do sertão. Queria voltar pra plantar e colher, tomar banho no riacho e pisar na terra molhada.

E mandou um recadinho especialmente para a irmã: guardava a pedrinha com todo carinho, beijando sempre como se fosse no rosto dela. Mas a verdade era bem outra. A pedrinha não havia saído dali, do lugar onde a família morava, pois assim que subiu no caminhão ele a retirou do bolso e a jogou no meio do tempo.

Crisosta, a irmã que havia confiada seu amuleto ao irmão, não sabia disso. Se soubesse as consequencias seriam imprevisíveis. A um só tempo ele havia quebrado a confiança e a deixado sem aquela preciosidade que amava com devoção. Vivia no oratório, havia sido banhada com água benta, era depositária da maior devoção, e agora jogada ali por perto num canto qualquer.

No sétimo mês de ausência, ainda sem mandar novas notícias, a irmã teve um sonho que lhe causou profunda aflição. O seu irmão estava em perigo, sendo perseguido, procurava aquela pedrinha para jogar no inimigo e não encontrava. A pedra não estava mais com ele. E ia correndo e gritando, pedindo perdão à irmã porque não estava mais com o amuleto de proteção.

Ficou com em tempo de se acabar com maus presságios. Não disse nada a ninguém para não complicar mais a situação. Tudo ali estava difícil demais. Quanto mais o tempo passava mais o sertão inteiro esturricava, o sol abrasava tudo, parecia subir fumaça pelos descampados.

Já faltava água para o banho, para beber e para os bichos. Conseguir uma lata d’água era o maior sacrifício. Uma vez na vida outra na morte o caminhão-pipa passava por ali, pela estrada adiante. Comida da terra há muito que ninguém via. Trabalho na terra não existia de jeito ninguém. Aliás, não havia trabalho algum.

As famílias se mantinham caçando preás, nambus e codornas. Uma caça maior não era encontrada de jeito nenhum e as menores já estavam sumindo tanto pelos caçadores como pela secura da mata. Mataria não, apenas tufos acinzentados, esbranquiçados, garranchos, folhagens mortas por todo lugar.

Tudo isso fazia com o que o pai de Crisosta ficasse em tempo de endoidar. Já não sabia o que fazer para alimentar a família nem manter de pé o resto das vaquinhas ossudas que ainda chiqueirava no pasto seco. Urubu já vivia sobrevoando o lugar.

Sua mãe era outra que vivia feito uma doida. Rezava dia e noite, fazia promessa pra São José e todos os santos na esperança de cair pingo d’água. Logo cedinho e já estava olhando pro tempo de rosário na mão, chorosa, numa oração lamuriosa. Certa feita a filha ouviu a pobre mulher danada com um santo, dizendo que se não chovesse logo nunca mais lhe acendia uma vela nem botava fita aos seus pés. Coitada, pensou a filha tristonha.

Numa manhã de tempo aberto, desesperançada como as demais dos últimos anos, o pai da mocinha saiu de casa dizendo que ia até o cercado para ver se ainda restava alguma coisa além de osso em alguma vaquinha. Ia vendê-la, fosse por qualquer tostão, mas ia vendê-la. O lucro pequeno talvez desse para ir até a cidade e comprar alguns alimentos que não deveriam faltar na cozinha. Mas vender a quem, se todo mundo ali estava na mesma pobreza?

Ainda assim seguiu em direção ao cercado. E não voltou mais. Não aquele sertanejo lutador, cheia de esperança e vigor. Mas apenas o resto do homem. Morto.

Continua...

Poeta e cronista

e-mail: rac3478@hotmail.com

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