ANGÚSTIA DE UM REMORSO
Todas as tardes ao pôr do sol, na tímida vilazinha de ruas estreitas e casinhas simples, denotavam-se a figura gentil do cego Antonio, conhecido por todos, pela sua apurada educação e sábios ensinamentos.
Apesar de sua cegueira de nascença e de suas pobres vestes, às vezes ganhadas de alguns populares e vizinhos generosos, mantinha-se sempre bem asseado por sua mãe, a bondosa dona Isaura, com quem vivia em uma velha casa de poucos cômodos, com uma varanda rodeada de arbustos, roseirais quase sempre floridos e lá no fundo do quintal vislumbrava-se uma árvore grande, frondosa, em cuja sombra os garotos vizinhos sempre brincavam alegremente, deliciando-se de todo aquele frescor, do belo cenário verdejante e da boa acolhida do senhor Antonio e de sua genitora.
Apesar de sua bondade e resignação às intempéries da vida, Antonio sempre fora vítima dos mais diferentes tipos de deboches e humilhações, impostas geralmente por alguns garotos liderados por um tal de Índio, um rapazola viril e de maus costumes, conhecido em toda a vila e adjacências pelo seu mau caráter e total falta de respeito humano. Não estudava e tampouco auxiliava a pobre mãe em algum trabalho doméstico. Era filho único de uma humilde senhora que, após a morte do marido, passou a ser o único sustentáculo da casa; trabalhava com afinco na confecção de bolos e doces encomendados por pessoas compadecidas com suas dificuldades financeiras, pois tinha, sobretudo, esse filho garoto ainda, porém, muito peralta, o qual possuía a alcunha de Índio, por ter aparência realmente indígena.
Passavam-se os dias e sempre a mesma ladainha: a casa do deficiente visual, logo pela manhã, ficava repleta de crianças a brincar em seu amplo quintal e, à tardinha, lá ia o senhor Antonio fazer a sua costumeira caminhada com passadas lentas e às vezes cambaleantes, apoiado em sua tão desgastada bengala. Porém, em determinado trecho do caminho, sempre surgiam os endiabrados garotos, tendo à frente o tal Índio, a fazer as mais diversas implicações com o pobre cego, chegando até mesmo a atirarem objetos em sua pessoa, seguindo-se de gargalhadas e ofensas inconcebíveis.
Quando alguns moradores, inconformados com tais atitudes, partiam para cima dos vândalos, estes fugiam ràpidamente, tomando rumos totalmente desconhecidos e, ao sentirem que a cada dia que se passava mais dificilmente se tornaria pegá-los, acentuavam-se cada vez mais as ofensas e covardias.
Um dia certo, porém, o cenário parecia ter tomado forma diferente: a passarada esvoaçante desencadeou-se em voos acrobáticos e cantos melancólicos, como a pressentir algo trágico a acontecer.
Vislumbrava-se ainda distante, a figura do senhor Antonio, enquanto o Índio e sua turma se escondiam em espreitas e atalaias.
Aos poucos, o desprotegido cego aproximou-se da turma, que a essa altura já se postava para a bagunça e o vandalismo de sempre e eis que, de repente, um pequeno fragmento de madeira lançado pelo Índio atinge em cheio, impiedosa e cruelmente a sua fronte e, após alguns passos cambaleantes, o pobre cego tomba ao chão, sendo atingido ainda num último ato, pela ponta de sua inseparável bengala. Na queda, quase desfalecido, bate violentamente a cabeça numa pedra, tendo o seu rosto lívido imediatamente banhado de sangue. Enquanto isso, os vândalos fugiam em desabalada carreira.
Acolhido por populares, Antonio fora transportado de imediato ao hospital mais próximo. Tudo em vão!... Antonio falecera antes mesmo de ser assistido no hospital.
Ao tomar conhecimento do ocorrido, toda a vila saiu à caça dos pequenos marginais, os quais, ao que tudo indicava, teriam partido para fora do vilarejo.
No dia seguinte, durante o féretro, O pequeno vilarejo emudeceu-se, compadecida e revoltada com o ocorrido.
Algo teria que ser feito ao Índio e sua turma, os quais, finalmente foram apreendidos; porém, nada devolveria o senhor Antonio aos seus legítimos amigos e à doce candura dos braços de sua mãezinha, a amável dona Isaura, que, após a perda do filho querido, adoeceu-se misteriosamente. O Índio, por sua vez, após algum tempo de internação num reformatório (pois ainda era menor de idade), foi libertado. Não se sabe por quê, após sua libertação, o seu comportamento mudou completamente. Entristeceu-se, raramente conversava e já ajudava a mãe em alguma tarefa de casa, embora ainda relutasse em não frequentar a escola.
Com o passar do tempo, num dia claro, alabastrino, também ao pôr do sol, o mesmo Índio, de tantas arruaças de tempos atrás, num ato repentino e insano, não suportando o peso esmagador de sua consciência pusera fim à sua própria vida.
E assim, com todos esses acontecimentos, o vilarejo entristeceu-se, mas as crianças ainda brincavam à sombra dos arvoredos da velha casa, e os pássaros com seus cânticos harmoniosos ainda vinham a cada pôr do sol, como a prestar homenagem póstuma ao saudoso Antonio, cuja vivencia e sua penosa lida, ficarão para sempre, incrustadas na memória de todos aqueles que conheceram e vivenciaram a sua dor, o seu penar.