Ivem a Lira
Entardecia, e os encantos do anoitecer derramavam-se no limite entre a terra e as águas do Rio Tubarão. Na outra margem, aquela ainda tão desconhecida, o universo etéreo, guardião dos segredos do espaço inefável , silenciosamente glorioso, era uma festa de brilhos.
Eu estava a olhar a tarde que, naquele momento, era de uma quietude inusitada. Mas, bem longe, acho que lá pelas redondezas da Catedral, uma melodia vinha nascendo, caminhando compassada, crescendo no som metálico de uma bateria, em compasso com trompetes e saxofones ...
- I vem a Lira! I vem a Lira ! A Liraaaaaaaaaaaaaaa... é um só eco na alma da gente tubaronense. Vem descendo pela Rua São José, a fanfarra inunda a Altamiro Guimarães e, ao atravessar os trilhos, aqui em Oficinas , a infância da rua São Geraldo dispara correndo, para acompanhar a Lira.
Foi então que Gabriel veio se esgueirando pelas frestas de um tempo não muito longínquo. Quando me dei conta de que ele retornara, abracei-o ansiosa de saudade, tão feliz,.Mas logo o vi afastar-se, sem nada dizer, deixando apenas uma luz, delicada luz, como a da ternura que nos envolvia.
E foi no encalço desta luz que comecei a procurá-lo. Dobrei esquinas de lembranças, nem sei quantas. Que luas se passaram? Não sei. Quantos pores-de-sol foram cantados na poesia da minha terra? Não sei ...
E foi num outro anoitecer que o pressenti no alvoroço da cidade, às vésperas de Natal.
Um perfume de sopa na cozinha. Surpreendi-me abraçada por Gabriel. Depois reencontrou o gesto antigo: foi ao armário, lá estava a caneca que ficara a sua espera, alcancei-lhe a colher .. Na gaveta, a concha era a mesma ... Serviu-se de sopa, repetiu o elogio que eu guardara no coração: -“Que rango bom!” Estava em casa ...
- I vem a Lira! I vem a Lira! A Liraaaaaaaaaaaaaaaa...
Gabriel reencontrou a porta do quarto, e o banjo, calado ...
Fez-me um aceno de mão, jogou um beijo, tomou o banjo, e sugeriu o gesto antigo de tocá-lo. Envolveu -se na delicadeza da luz e reencontrou seu lugar na infância da minha rua, que corria para acompanhar a Lira Tubaronense.
E é sempre assim, quando “i vem a Lira” . São outros os meninos e meninas que correm gritando, para dizer que a Lira “ i vem”. E eu os acompanho, porque sei que entre eles encontrarei Gabriel e seu banjo, sua infância.
Que seja outra vez centenário o pregão : “I vem a Lira!!! Liraaaaaaaaaaaaaaaaa ....
Maria Felomena Souza Espíndola