ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (4)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (4)

Rangel Alves da Costa*

Aquela pessoa saindo da velha casa abandonada certamente fazia parte de suas sombras, de sua história, dos tempos idos, do seu passado. Se era pessoa de carne e osso ninguém pode saber ainda, pois a estranha figura enveredou no meio da escuridão tempestuosa com sua maletinha e sumiu.

Num tempo já carcomido e envelhecido, a última pessoa que havia sido vista por aquelas bandas, a última vivente daquela moradia, havia sido Crisosta. Era também a última de linhagem familiar extensa, muita antiga, desbravadora de toda aquela região agrestina.

Dizem que Crisosta parecia uma velha nos seus sessenta e poucos anos. As pessoas que passavam pela estradinha que cortava a fazenda sempre a avistavam do lado de dentro da janela com seu olhar triste vagueando o mundo.

Ficava sempre sentada naquele local, entregue a uma cadeira de balanço e observando a paisagem cinzenta lá fora, sentindo o tempo não passar, rememorando tristemente o passado familiar e outros passados.

Não errava quem pensasse assim. Realmente a mulher ficava quase o dia inteiro sentada numa cadeira de balanço, se balançando de vez em quando, com os olhos muitas vezes marejados olhando as paisagens ao redor, as cores do dia, tentando costurar uma história para nela poder se encontrar. Já nem sabia se existia mais a mulher.

Mas o que mais lhe doía, corroia tudo por dentro, era a constância da solidão. Não a esperança de uma solidão passageira, mas a certeza da solidão contínua, enraizada, permanente e maior a cada dia que passava. Tinha convicção que ninguém chegaria ali, bateria à sua porta, pediria um copo d’água, estivesse disposto a um dedo de prosa.

Era a solidão intensa, feia, monstruosa, ameaçadora, terrível, gritante. E plenamente solidão. E solidão mais amarga e aguda do que a solidão do cachorro que vivia ali sem a amizade de outro cão, do tronco do pau derrubado mais adiante, da velha baraúna que parecia se eternizar no lado de fora, da pedra e sua rigidez triste e solitária.

E também solidão insensível e desumana, covarde e inimiga. Cruel, tão cruel solidão. A porta do fundo era somente a porta do fundo e mais nada adiante, a porta da frente também, e ainda mais desesperadora. Na porta da frente não chegava ninguém. Um galo cantava, um sino dobrava, um barulho de voz se ouvia, mas jamais sentiu a presença do galo, da igrejinha, de qualquer ser vivente que estivesse abrindo a boca para falar.

Do silêncio, a mudez. Não lembrava mais quando havia aberto a boca para falar qualquer coisa. Não conversava sozinha, não tinha ninguém para conversar. Deixou de falar com o cachorro, deixou de falar com o vento, com a brisa da tarde, com a lua da noite, com os santos, com seu Deus. Não rezava baixinho, apenas movia os lábios em oração. Talvez a boca já não soubesse mais pronunciar nada. Também não tivesse mais nenhuma valia.

Aquele bicho voando parecia um passarinho. E era, mas tinha um nome. Não lembrava mais. Há muito que não chamava andorinha de andorinha, sabiá de sabiá, azulão de azulão. O nome do cachorro era Ventania, mas bastava ser cachorro. Trincava os dedos e ele chegava. Não precisa chamar mais o nome. Boca sem serventia, a boca.

Mas não esquecia de jeito nenhum os nomes de um monte de gente de sua família, de seu rol de conhecidos, de pessoas que foram importantes demais em sua vida. Gostaria de gritar pelo nome de sua mãe e dizer que o mascate estava ali na sala com uma mala cheia de tecido vistoso e bonito. Seu pai gostaria de ver aquele chapéu panamá novinho, coisa de luxo, reservado que seria para dia festivo na cidade.

Gostaria de gritar pela prima Zefinha, pelos outros primos Torquato, Licurgo, Bastiana, Lipúrcia. Os amigos também chegavam por ali, e como seria bom chamar por Toinha, Esmeralda, Afrísio, Beroldo, Tiziu. Agora chamava só na lembrança, na saudade demais, mas como gostaria de abrir a boca para chamá-los em pessoa.

Qualquer dia desses abriria a boca só pra dizer qualquer coisa. Seguiria até o espelho amarelado, já quase sem moldura, e reaprenderia a abrir a boca e pronunciar palavra. Se aprendesse novamente sairia na porta de casa e gritaria bem alto: “Mundo, eu ainda existo mundo!”.

Mas será que existia?

Continua...

Poeta e cronista

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