ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A LONGA ESTRADA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A LONGA ESTRADA

Rangel Alves da Costa*

Conto o que me contaram...

Tenho mais de mil, dois mil anos, ou o dobro disso, pois o tempo é tão longo que me faz esquecer quase tudo. Não sou parente de Adão pelo fato da criação bíblica, mas pela proximidade consanguinea que tinha com o mesmo. Éramos primos, e primos carnais.

Naquela hora da tentação, com uma vontade danada de levar adiante o cometimento do pecado, gritou pelo meu nome e cheguei no mesmo instante. Estava com Eva por detrás de um tufo de mato e apenas pediu-me para acertar a serpente de jeito. Não tive saída. Meu primo pediu e dei cabo da desaforada.

Porque me intrometi onde não devia, fui castigado e jogado nas areias quentes dos desertos mais distantes e inabitados. Passei por situações terríveis. Sempre perseguido pelos habitantes daquelas terras inóspitas, tuaregues sedentos, um povo bárbaro e com poucos amigos. E o pior é que bastava olhar pro lado e vinha uma porção deles na sua penitência de sol.

Tudo era perigoso demais, parecendo que uma serpente sem fim se movia logo abaixo da areia, faminta, pronta pra atacar a qualquer momento. Como não bastasse, ainda assim tinha de suportar o sol e o calor sufocante do dia, bem como o frio de fazer tremer ao anoitecer. E a ventania de areia chegava tão forte que por muitos anos não pude olhar pra trás por nenhum instante.

Não sei se sorte ou azar, mas se formou uma ventania tão forte que não sobrou nenhum pé de palmeira das poucas que milagrosamente resistiam àquele clima. Os troncos foram arrancados e se fizeram verdadeiros garranchos pelo ar, voando leve feito folha ao final do outono. E eu agarrado num velho tronco, subindo, subindo, e depois descendo. Mas sabe onde?

Não vão acreditar, mas vou dizer. Antes mesmo de a ventania me jogar em qualquer chão, senti logo uma mudança drástica no clima, algo como uma leveza que nem parecia coisa da terra. Era terra e não era, pois na residência dos deuses onde fui parar era misto de paraíso, de jardim primaveril, de campos cheios de girassóis. Contudo, soube depois que logo ali pertinho, coisa de pouca caminhada, havia também o contrário disso tudo, um mundo que mais tarde foi descrito pelo poeta Dante.

Fui jogado bem ao lado do resplandecente trono do todo poderoso do lugar, o próprio Zeus, o maior de todos os deuses mitológicos. Acima do seu trono havia uma placa dizendo “Aqui o Olimpo. E aí na tua presença um deus, um semideus ou um estranho que não merece viver”. Tremi de cima abaixo ao ler a mensagem, mas procurei manter uma postura digna para não ser logo percebido como simples mortal.

Fui descoberto enquanto me banhava numa fonte de água cristalina. Depois de muito tempo sem olhar o meu rosto num espelho, assim que encontrei o véu brilhante da água sorri e falei o quanto continuava belo, talvez o mais bonito dos seres. Contudo, alguém que ia chegando ouviu e não gostou. Narciso, aquele mesmo que se ama diante de espelho que reflita sua beleza, logo gritou que ali estava um forasteiro.

Depois de ouvir o Conselho dos Deuses Anciãos, Zeus decidiu mandar chamar Hércules para que eu pudesse ajudá-lo nos seus Doze Trabalhos. Seria verdadeiro castigo. Uma Ninfa soprou-me que eu não sairia com vida, mas Eolo, o deus do vento, espirrou no mesmo instante em que eu seria enviado para a dura labuta.

E do sopro feroz fui parar bem longe, no meio do mar, mas bem dentro de um navio que parecia perdido. E o seu comandante, um tal de Aquiles, logo deu-me um sorriso esperançoso e perguntou se eu tinha notícias de Penélope, sua esposa. Disse-lhe apenas que àquela hora deveria estar fiando para depois desfiar, costurando para depois desfazer, até que um dia ele voltasse para compreender o significado da verdadeira honra de uma mulher.

Poeta e cronista

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