ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A CASINHA DA BONECA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A CASINHA DA BONECA

Rangel Alves da Costa*

Conto o que me contaram...

Não era de papelão não, nem uma estrutura provisória, armada num canto, toda repuxada em pedaços de plástico ou de pano, era uma casinha mesmo, firme, com endereço certo e tudo mais. Só que uma casinha de boneca, ou casinha da boneca, pois nela morava uma lindezinha toda feita de pano e enchimentos.

A bem dizer, quem visse a dona da boneca com sua amiguinha no braço logo diria que se tratava de mãe e filha. A mesma cor, os mesmos olhos amendoados, as tranças nos cabelos, as pintinhas no rosto, o vestidinho de chita. Se houvesse um sorriso na boca da bonequinha, certamente que seria igualzinho ao sorriso de sua amiguinha.

A boneca de pano não dizia nada para não contrariar sua dona, mas a verdade é que se sentia muito sozinha de vez em quando. A menina saía cedinho pra estudar, quando voltava ia fazer outros afazeres, coisas como dever de casa e tudo mais, e só tinha tempo pra ela já de tardezinha. Às vezes nem isso, pois já aconteceu de passar o dia inteirinho sem ir ali conversar, perguntar como ia, colocá-la no braço e fazer uns dengos.

Por isso mesmo que andava chateada. Nunca tinha acontecido antes o que a boneca viu sua amiguinha fazer outro dia. Passou pra lá e pra cá, foi e voltou, e nem se abaixou para olhar pra dentro da casinho, perguntar como ela estava, nada. No seu cantinho, desencorajada para andar de lado a outro, a boneca só via o sapatinho da amiga passando.

E de repente resolveu ter vida própria, não mais esperar que a outra chegasse por ali. Ora, tinha uma casa, gostava de estar com a vassourinha na mão limpando num canto e noutro, adorava estar arrumando a mesinha, o sofá e a estante. A todo momento inventava um vaso de flores pra enfeitar sua casinha. E então espalhava vasos pra todo lado, com roseiras, crisântemos, girassóis.

De tanto se ocupar na sua casinha passou a nem lembrar mais da outra. A tarde começava a chegar e nem ficava ansiosa na expectativa de ela aparecer. E pra não lembrar mesmo de jeito nenhum, começou a cantar tanto que parecia nem querer mais parar:

“Atirei o pau na gato, tô ô to, mas o gato tô ô tô saiu correndo dô ô dô, mas depois, mas depois ele voltou e o gato, e o gato me azunhou...”.

“Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava tirar o asfalto, e botar uma areia com brilhante, pra brilhar quando eu desse mais um salto...”.

E assim ia cantando, inventando estrofes pra cantigas já conhecidas. Mas numa tarde, enquanto cantava “Fui no tororó beber água não achei...”, eis que a menina coloca uns olhos imensos na porta da casinha e pergunta se era verdade mesmo que estava ouvindo ela cantar.

A boneca de pano ficou calada e não respondeu nada. O espanto foi tão grande de ser flagrada cantando que pareceu que estava muda. Mas depois olhou bem no olho da menina e disse que não só falava como também cantava, e ainda por cima havia feito uma música pra ela. E cantou:

“Minha amiga sou eu, só quem gosta de mim sou eu, e quem fingir gostar de mim, finja também que já morreu...”.

E a boneca não saiu mais dos braços da amiguinha. Cantando, sempre cantando.

Poeta e cronista

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