ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VINGANÇA DOS ENCANTADOS (3)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VINGANÇA DOS ENCANTADOS (3)

Rangel Alves da Costa*

Tudo começou quando um sertanejo chamado João Evangelista, mais conhecido como João Espoleta – como será chamado daqui em diante -, um velho caçador e conhecedor dos segredos da selva nordestina como ninguém, deu pra falar demais do que fazia na mata, inventando lorota pra contar vantagem e dizer que jamais havia saído pra caçar e não trazer nas costas ou no alforje aquilo que bem entendesse.

E não somente isto, pois dizia também que sabia onde se escondia o teiú, qual a loca que estava o tatu, qual vereda era mais fácil de pegar preá, por detrás de qual tufo ou amoitamento estavam escondidos os animais de maior porte. E afirmava que tinha o mapa de todos os bichos existentes na mataria e que sabia até a hora que a seriema abaixava a cabeça pra beber água. E o mais incrível: que o mato fechado se abria para colocá-lo diante do bicho que quisesse matar.

Mas tudo mentira. Quer dizer, quase tudo, pois qualquer caçador de muitos anos na lide, contando já com qualquer experiência, conhecia suficientemente bem a floresta para saber os locais onde determinados tipos de animais gostavam de ficar escondidos. Portanto, não era proeza alguma dizer que é mais fácil pegar cágado andando quando fosse tempo de trovoada chegar.

Ora, todo caçador sabia que assim que as nuvens enegrecidas se formavam no horizonte, o tempo fechava e os primeiros sons de trovões já se ouviam ao longe, era certeza de que os cágados saíam de suas tocas e começavam a desesperadamente andar por todo canto. O mesmo se pode dizer daqueles animais que após qualquer chuvarada fazem fila para, ao entardecer, beber água no tanque ou na barragem. Todo caçador devia saber disso, sob pena de não ser considerado como tal.

Contudo, por mais que lorotasse, que contasse vantagem, jamais João Espoleta citava o que fazia para de vez em quando se sair bem nas caçadas. Não dizia, por exemplo, que havia entregado cinco contos de réis pro velho Simão Sete Portas, um duvidoso catimbozeiro existente na região, preparar um patuá que só era usado, colocado no pescoço, quando entrava na mataria.

Dentro dum saquinho costurado e tendo por cima uma cruz bordada, estavam raspas de ossos de animais, pelos e outros elementos tirados da floresta sertaneja. Ninguém acreditava no efeito disso não, mas como dizem que a força da mandinga não está no objeto encomendado, mas no desejo de quem encomenda, então que o caçador achasse que aquele amuleto pendurado no pescoço tinha alguma valia.

E João Espoleta não botava o pé na mata sem antes lembrar de colocar seu patuá. Mas a verdade é que agia com muitas outras artimanhas que não contava a ninguém, e talvez por vergonha das atitudes desprestigiosas para a classe caçadora. E fazia coisas que realmente ninguém acreditaria.

Chegava ao mato e ficava cantando cantiga oferecida aos seres encantados, que escondidos, invisíveis, ouviam tudo. E entoava um canto onde dizia que o curupira era um anjinho, que amiguinho igual não havia; levantava voz pra dizer da lindeza, do aroma e da sabedoria da caipora; só faltava chorar cantando pra dizer que o saci-pererê tinha mais pernas e conhecimento do que todo mundo.

E assim, puxando saco de um e de outro, lá ia João Espoleta se aventurar na mata. Mas não sem antes fazer outra coisa, algo comum e até obrigatório para os caçadores: deixar oferendas por cima das pedras para que os encantados sentissem sua gratidão e abrissem os caminhos para uma caçada com grande produtividade. Assim, deixava pedaço de fumo, pó de tabaco, cigarro de palha e até garrafa de aguardente, dentre muitas outras coisas.

E os seres encantados gostavam que fizessem assim mesmo. Muitas vezes até se escondiam por trás das moitas e falavam como gente com o caçador. E conversa por demais proveitosa, porém matreira, astuciosa demais, como será mostrado no texto seguinte.

Poeta e cronista

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