ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: LAMPIÃO E PADRE ARTUR, A BUCHADA E A HÓSTIA (II)

Rangel Alves da Costa*

Sim, no texto anterior eu parei no exato momento em que Lampião perguntava a seu anfitrião China o que estava lhe acontecendo para ficar com semblante de preocupação e o amigo já ia começando a responder, a dizer a verdade, pois não era homem de mentira.

O velho China teve que se virar como pôde para contar ao Capitão Lampião que estava recebendo um visitante também muito importante, naquele momento trancado no quarto ao lado – e talvez até ouvindo o que conversavam, pois padre tem ouvindo bom demais para ouvir conversa dos outros. E o mais difícil ainda foi dizer que se tratava do Padre Artur, estando ali para celebrar missa em homenagem a Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo.

Mas sinta o drama do homem, sinta suas palavras:

“Capitão Virgulino, me sinto em situação avexada mesmo e tudo por causa de outro visitante que nesse momento está aí dentro desse quarto. Sabe como é, né, festa da padroeira sempre aparece gente importante por aqui, como a sua ilustre pessoa e todo o bando. E quem também veio pra minha casa, como faz todas as vezes que desanda pra essas bandas, foi o vigário, o Padre Artur Passos. Vocês chegaram quase no mesmo instante, quase se encontrando na porta de casa, porém ele chegou um instantinho primeiro e, parecendo cansado, entrou pra uma soneca reparadora. Agora ele tá aí e o senhor aqui, e é esse o meu temor. Fico avexado só em saber como o da batina vai reagir quando souber que o da arma de fogo está sob o mesmo teto que ele...”.

Lampião ouvia essa informação olhando para os lados, despreocupado, até com semblante amistoso demais. Sorria de vez em quando ao ouvir o relato ainda nervoso do amigo. Mas o interrompeu, dizendo:

“Amigo China, pelo visto o senhor está preocupado com a reação do Padre Artur com relação à minha presença aqui. Tem sua razão, amigo, tem sua razão, pois se respeita muito mais a religiosidade do que quem tem fama de bandoleiro, de perverso, de assassino. O senhor bem sabe que carrego essa sombra sem ser assim, pois conhece muito bem os propósitos e objetivos da minha luta, que outra não é senão ser a voz do sertão contra as tantas injustiças que a gente vê por aí. O senhor bem sabe disso, amigo. Agora, pra ser mais justo ainda, me pergunte o que acho da presença dele aqui e como sinto em estar debaixo do mesmo teto que o homem que também tem as chaves do céu. Vá, amigo China, me pergunte...”.

E dessa vez o anfitrião sentiu um estremecimento danado nas pernas, principalmente porque sabia que Lampião podia responder calmamente ou transformado numa fera raivosa. Mas perguntou. E o Capitão das caatingas respondeu:

“Na qualidade de homem, a honra dele será a minha, mas na condição de fervoroso cristão, posso dizer que se fosse possível beijaria a mão da igreja. Mesmo na vida difícil que levo, muitas vezes sem tempo pra me ajoelhar em oração, pra uma prece pedindo proteção, ainda assim tenho o meu bom Deus como guia maior. Também sou homem, amigo China, também sou gente, também tenho um coração fervoroso e uma caminhada que precisa demais da proteção divina. Por isso mesmo compadre, se for possível peço que converse com o Padre Artur e diga que estou em paz por aqui, que o que aconteceu foi uma coincidência das boas, eu vindo parar aqui no mesmo instante que a igreja vai celebrar missa. E diga também que não se avexe não e que o Capitão Virgulino gostaria demais de ter um dedo de prosa com ele. Mais que isso, teria imensa satisfação em dividir a mesa do almoço com ele, comer da mesma buchada e quem sabe brindar um trago de vinho...”.

O anfitrião China não se cabia de contentamento, de alívio diante das palavras ouvidas. Contudo, repentinamente lhe surgiu outro probleminha, que era saber se o Padre Artur, famoso pelo seu mau humor, aceitaria conversar com o rei dos cangaceiros e ainda por cima sentar-se no mesmo regabofe que ele.

Esse probleminha aumentou ainda ao ouvir do Capitão: “Se preocupe não, amigo China, se avexe não. Deixe o homem descansar mais um pouquinho que daqui a pouco eu mesmo vou bater nessa porta e me anunciar...”.

China perdeu a cor, tremuleceu novamente as pernas, não sabia mais o que fazer nem dizer. Fazer o que diante do desejo de Lampião? Com a porta trancada, evidentemente que ninguém sabia, mas do outro lado da madeira, com ouvido afiado, Padre Artur ouvia tudo. Não só ouvia como enchia de munição a sua arma, o seu revólver.

A coisa parece que ia ficar feia. Mas conto amanhã como foi.

Poeta e cronista

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