ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O TEMPO E A SOLTEIRONA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O TEMPO E A SOLTEIRONA

Rangel Alves da Costa*

Conto o que me contaram...

Quem me contou não foi a janela não, que era a amiga inseparável da solteirona, mas alguém que conhecia muito bem os seus achaques, medos e temores, e principalmente a sua solidão. Mas nem insistam que não revelarei o nome. Solteirona zangada é pior do que espoleta aquecida.

Mas deixemos isso de lado e vamos ao que interessa, e a quem interessar possa. Mas peço pelo amor de Deus que não deixem nem que o vento sopre qualquer coisa do que vou dizer aos ouvidos dela. Repito: solteirona é fogo vivo perto de álcool.

Valente demais a mulher, principalmente se o assunto pendesse para o lado de seu estado civil e principalmente de sua idade. A quem perguntava se era solteira ou casada, respondia imediatamente na cara que não interessava a ninguém se fosse casada, solteira, amancebada ou puta. E que fosse viver sua vida e deixasse a dela em paz.

Problema muito maior era se alguém se atrevesse a perguntar quantos anos ela carregava por cima daquele empozamento todo por cima do rosto. Ou chamava o indivíduo de tudo que era nome feio, rebaixando-o ao mesmo estágio do mais vil dos seres, ou simplesmente ficava de mal para o resto da vida.

Quem sabia algo em torno de sua idade não era nem besta de tocar no assunto, pois já conhecia a fera. Pelas reações que apresentava certamente que havia algo muito grave a esconder, talvez uma idade matusalina que não admitia ninguém ficar sabendo. Mas o seu comportamento em relação ao tempo era o que mais lhe depunha desfavoravelmente.

Coisa de maluca mesmo, de velha gagá, ultrapassada, invicta, desesperançada, dessas que a solteirice lhe sobe à cabeça de tal modo que vai criando certos costumes mais que estranhos. Daí que mantinha hábitos mais que curiosos e todos relacionados ao tempo.

Não podia ver um calendário à sua frente nem admitia que colocassem algum dentro de casa. Só em ver aquelas folhinhas marcando o ano, meses e dias, já lhe causava arrepios, enjoos, aflições.

Não falasse de relógio perto dela nem, sequer em pensamento, tencionasse em presenteá-la com um. Bastava pensar naquelas horas passando, nos minutos consumindo suas esperanças e nos segundos lhe envelhecendo ainda mais que ficava em tempo de ter um ataque e morrer.

Desse modo, era inimiga de fogo a sangue de datas festivas, de aniversários, de calendários, da passagem do sol e da chegada da lua, do canto do galo, de cada natal e ano novo. Dizia que o seu tempo era ela mesma que fazia e pronto. Certa vez deixou de arrumar um emprego bom porque exigiram o seu documento de identidade. Mas ora, ali estava a data do seu nascimento.

Só uma coisa assustava mais a solteirona do que calendário. Todo espelho da casa vivia permanentemente encoberto por panos. Certa vez alguém esqueceu o espelho descoberto e ela passou diante dele toda faceira. Virou-se de lado e se viu, e deu o mais horrendo dos gritos: Socorro, o fantasma de uma velha!

Poeta e cronista

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