Neblina
NEBLINA
Helena permanecia com os olhos fechados numa sonolência difusa. Ouvia ao longe os gritos agudíssimos das gaivotas que circulavam em busca de algum alimento entre as pedras da praia descobertas pela maré baixa. Neste ano, essas marés se faziam mais pronunciadas. Seria talvez devido à presença constante da neblina que não permitia se enxergasse nada além de um palmo da varanda, à frente da pequena casa de madeira, sítio das férias de verão desde a sua infância? Ou a causa seria outra, ligada ao movimento da lua? Helena e lua, juntas na natureza, refletoras de luz alheia. Qual seria realmente a causa dessa branquidão fora das portas e janelas? Era assim que Helena se sentia por dentro, tudo uma massa disforme, sem contornos, plana. Um vasto deserto. Ela não entendia nada do mundo natural. Natureza e ela se combinavam quando ela, Helena, se sentia protegida por trás das vidraças. Desde sempre. Ainda ouvia a voz de sua mãe, chamando-a para fora, para o calor do sol e para as atividades físicas que a ela tanto agradavam e das quais Helena se esquivava, sempre se esquivava. Doía-lhe o brilhantismo das águas verde-azuladas, onde milhares de diamantes pareciam faiscar refletindo o grande astro, dominador, dono de toda a amplidão, brilhando na sua abóbada azul, limpa de nuvens. Praia e Helena, dois elementos que não se deram bem durante toda a vida. Parecia até praga que às praias fosse reservado um lugar traumatizante em sua vida, devido à falta de interesse que elas agora lhe despertavam. Doía-lhe também a eterna movimentação das pessoas a seu redor, azafamadas numa labuta, para ela, inglória e improdutiva. Por que, se perguntava, havia essa necessidade de marcar a terra com seus passos, suas lutas, mesmo que fosse só para se divertirem ou descansarem? Carregando pedras? Obviamente nascera no lugar errado, se ligara a uma família errada e vivia num tempo errado. Helena preferia a sombra, a ausência do sol forte e a luz mortiça das velas durante as refeições noturnas. A luz elétrica acabara com a beleza e o romantismo do mundo. Tudo descoberto, exposto e aberto a tudo e a todos, um defloramento constante do mundo. Quando a neblina chegava, Helena gostava mais era de ouvir o som suave das folhas de um livro, confortavelmente lido numa poltrona situada ou ao pé de uma lareira ou ao lado de uma grande janela de onde se avistava o mar. O mar! Esse, sim, era o seu companheiro, com todas as luzes cambiantes de sua natureza. Ele, ao longe, lhe oferecia todas as variedades possíveis para sua cabeça cansada, branca como a neblina lá fora. Não dera pela mudança, tão rápida, tão segura, tão irreversível. Teria também perdido o gosto pela vida ou somente a coloração ruiva e rutilante do cabelo? Há muito tempo permanecia enclausurada dentro da casa e de si mesma. Valeria a pena abrir as janelas e deixar entrar a maresia, principalmente agora em que céu e mar e terra formavam uma tela branca única? A ausência do sol era propícia ao seu estado de espírito. Nada se lhe apetecia. Ou será que o ar marinho lhe traria lembranças que preferia esquecer? Perguntas infindáveis que continuavam a martelar sua mente. Não teria, pois, nunca um sossego? Não se cansaria de perguntar e nunca receber uma resposta satisfatória em toda sua vida? Não que houvesse perguntado muito. Ficara sempre calada, observando a cena, rezando interiormente para que a entendessem, a descobrissem, a ela e a seu mundo interior. Teria sido pedir demais? Talvez sim. Como tudo em sua vida: pouco demais ou muito demais. Nunca um meio termo. Um grito de gaivota a despertou, forçando-a a abrir os olhos. Olhou pela janela e viu um pato selvagem deslizar levemente sobre a superfície líquida. Ouviu o seu grito rascante, frenético, aterrador. Seu pai sabia como imitá-lo. Entoavam ave e homem um diálogo à beira d’água, um respondendo ao outro cadenciadamente, difícil separar a ave do homem alto e ruivo, conhecedor de todas as vozes de animais da redondeza. Olhou o mar, que continuava branco, a água um espelho plácido, que refletia a brancura, um mingau leitoso, e espesso, e celeste. Helena levantou-se e desceu as escadas em busca da filha.
Como ela, Isabela sabia esconder-se dentro de si, não permitindo a entrada de ninguém em seu íntimo. Isabela se esquivava de todos, mas principalmente da mãe. Seria praga da avó, que todas as mulheres da família fossem assim fechadas, arredias, rebeldes? Teria sido ela também uma rebelde? Helena lamentava nunca haver tentado conhecer a mãe. Isabela chegara havia uns poucos dias. Era a primeira vez que se viam desde muito tempo. Ainda não tinham conseguido quebrar o gelo estabelecido entre as duas desde o casamento há três anos. Rebelde era Isabela, certamente, indo contra tudo e todos. Helena não. O seu casamento tinha sido um casamento feito à base de conveniências, suas e das famílias. A sua família a queria bem casada, embora ela nunca tivesse sabido exatamente o que significava esse ser-bem-casada. A família de Ricardo encontrou o que buscava naquela jovem exótica, inteligente, calada e de quadris largos. Necessitavam de uma mulher forte, boa parideira, que lhes daria os herdeiros desejados. E ela, Helena, deixara-se levar, como escrava das circunstâncias. Ironia do destino que só lhe mandara filhas mulheres, nenhum macho, como repetia o marido desolado, lamentando a situação. Teria talvez por isso se finado pouco a pouco? Nunca Helena o soube com certeza. Melhor que tivesse sido assim. Não estaria sofrendo com o que se passava na família. Isabela, a mais velha das três, era o problema maior. Agora se descobria que era fêmea por fora, machona por dentro. Brigando com o mundo, não só era um porco-espinho, mas um porco-espinho cego além do mais, que não percebia que se feria mortalmente. Todos, não somente ela, sofriam com suas atitudes impensadas. Como seria, se perguntava Helena, agora que se encontravam sozinhas na casa familial? Perguntas e mais perguntas infinitas. Helena olhou a praia, já quase toda coberta pela maré e saiu à varanda que se debruçava sobre os penhascos. Enfrentaria o cheiro do mar e tudo o que ele lhe trazia.
Encontrou a filha na praia ao lado, sentada na estreita faixa de areia que nunca ficava submersa. Sentiu uma tonteira súbita, o que a fez perder o equilíbrio, forçando-a usar as mãos para não rolar sobre as pedras. Isabela observava a cena de longe. Não se levantou para ajudar a mãe, mas esta já conseguira sentar-se sobre a areia negra. Deixaram-se ficar, mudas, cada uma a um lado da praia, olhando a imensa tela branca, que parecia estar à espera de um pintor com uma paleta de tintas vibrantes. Que cores escolheriam elas? No momento, nenhuma agradava a Helena. O branco lhe parecia perfeito para descrever o que via (via?) por fora e sentia por dentro. E as cores de Isabela, tampouco a mãe saberia qual seria a escolhida. Negro, talvez? Olhando bem a paisagem, Helena via que a tela natural era, na realidade, cinzenta. Somente quando o sol se fazia visível, ou melhor, se deixava adivinhar por trás da neblina, era que a luminosidade se fazia mais clara. Em outros tempos, em outra praia, Helena teria escolhido o amarelo, o verde, o azul, cores que representavam, para ela, vida, esplendor, exuberância. Lembrou-se de como, naquela manhã distante no tempo e no espaço, levantara-se feliz, contente consigo mesma e com a vida, apaixonada, vibrante. E de como tudo se modificara, com as cores apagando-se totalmente, deixando apenas um buraco negro em torno de si mesma, anestesiada para o resto da vida com a insensibilidade e brutalidade das palavras ouvidas. E de quem! Nunca mais foi a mesma. Recolheu-se dentro de sua carapaça, protegendo-se de todos. Mas agora, tantos anos se haviam passado desde aquela época juvenil, que não saberia o que escolher, ou melhor, o que via lhe parecia ideal. Seria realmente verdade isso ou eram apenas palavras? Ou estaria ela na verdade fascinada pelo que representava a neblina, a combinação de todas as cores, unidas, amalgamadas, como ela gostaria de se sentir. Não, não de se sentir, mas de ser. Una, única, indivisível. Seria pedir muito? Seria possível ser uma pessoa inteira nesse mundo em que vivia? Como ser inteira se havia fragmentos ao redor, restos de passado? Olhou em direção a Isabela e percebeu que a filha a olhava de soslaio, com olhos inquisitivos, duros. Chamou-a para perto de si num gesto amigável. Seria atendida, se perguntava? Isabela levantou-se e veio em sua direção. O coração de Helena se apertou, temendo o que se passaria entre as duas naquela praia perdida, sem testemunhas, sem possibilidade de socorro, sem subterfúgios. Queria e não queria, buscava, mas não esperava encontrar. O que, se perguntava, o que buscava? Isabela sentou-se pesadamente ao lado da mãe, mirando a gigantesca tela virgem e se espichou na areia, olhando para cima, para a brancura que continuava a envolver a natureza. Olhava o céu esbranquiçado obstinadamente. Não estava ainda preparada para falar com a mãe. E não o faria. Muito tempo se deveria passar antes que pudessem entender-se de verdade. Não havia possibilidade de diálogo, ainda não. A ferida tinha sido muito grande e profunda, e ambas sabiam que a palavra perdão não fazia parte do vocabulário de nenhuma delas.
Helena ficou deitada, e tensa, esperando por um movimento da filha por largos minutos. Quando este não veio, levantou-se e entrou em casa. Paciência, o tempo ainda não era chegado. Entrou em casa.
A imagem de Roberto se metera em sua memória, que teimava em levá-la para aquele ano distante cheio de sol e de cores da sua juventude. Tinha certeza de que havia vivido realmente aquele romance? Teria sido apenas uma brincadeira? Por que terminara daquela maneira na areia da praia? Naquele momento começaram as suas perguntas angustiadas. Olhou-se ao espelho. Onde estava ela, a verdadeira Helena, atrás daquelas rugas, do cabelo grisalho, dos olhos cansados? Seria a mesma pessoa? Por que nada lhe agradava, nada chamava sua atenção e interesse? Queria ficar sozinha, esconder-se do mundo. Como Isabela. Queria mesmo? Teria ainda capacidade de dar de si mesma? Tinha? A quem? Ainda existiria uma pessoa a quem pudesse se entregar de alma? De corpo era fácil, uma coisa mecânica, sem emoção. Para isso não havia problema. De todos os homens que conhecera, somente um, Roberto, lhe aparecia na memória, dormente dentro dela, todos esses anos, desde aquele dia na praia. Estaria ainda vivo? O que teria sido feito de sua vida? Encontraram-se poucas vezes em reuniões sociais, cordiais, sem que ela mostrasse o turbilhão que sua mera presença lhe causava, com as borboletas dançando em seu estômago cada vez que sentia o contacto de sua pele sobre a dela num simples aperto de mão. Helena se pegou mirando o espelho e vendo a figura de Roberto misturada com a sua. Estava mas era ficando louca! Os problemas de Isabela a estavam transtornando. Onde já se viu isso? Sessenta anos, e pensando em amor e amor de adolescente? Ele provavelmente já nem pensava mais nela e nessas coisas. Cinco anos mais velho do que ela, já devia estar beirando os setenta. Será que seria possível? Seria possível ter-se um romance nessa idade? E se houvesse, como seria? Poderia ser tórrido? O vulcão que sentia adormecido dentro de si mesma nunca havia realmente entrado em erupção. Ou seria um amor terno? Teriam vergonha de se entregar agora um ao outro? Depois dos estragos sofridos e de mais de tantos anos sem se verem? Seria uma união de almas? Para a jovem Helena, Roberto tinha sido o homem de sua vida. Para ela, agora, seria ele a mesma coisa? Ou o teria idealizado toda uma vida e se decepcionaria? Deu-lhe saudade de Ricardo, esse sim, durante toda a sua vida tinha sido de uma ternura comovente, que finalmente a conquistara. Helena não se conformava, pois mais e mais perguntas, dúvidas e desejos lhe surgiam na cabeça transtornada pelos pensamentos. E de que tipo! Nunca pensou poder pensar esse tipo de pensamento, não nessa idade. Estava louca ou a vida era assim mesmo, sempre tinha sido assim? Por que não se falava sobre isso, assunto proibido nas famílias? Amor de idosos? Ninguém falava disso, assunto tabu. Seria possível amar-se nessa idade? A verdade é que não, não seria possível, pelo menos para as mulheres de sua geração. Havia outras batalhas a vencer, sabia-o dentro de si, mas não essa. A nova geração pensaria de outra maneira, e quando chegassem à sua idade, as coisas teriam mudado de figura. Era o que esperava. Mas as suas cartas, dela Helena, estavam marcadas.
Helena olhou para fora da janela. A neblina continuava presente. A aceitação da realidade, da realidade como entendida pelos outros, era a solução, tinha que ser a solução. Não havia escapatória. Helena, mais uma vez, era escrava das circunstâncias. Seu tempo já tinha passado, mas não estava morta. A vida a chamava lá fora, uma vida que começava, numa época muito mais complicada do que a sua, uma realidade chamada Isabela. A névoa envolvia apenas a natureza física, com uma ausência de contornos físicos, de limitações e marcos. Helena se soube delimitada. Dentro dela, uma nova realidade se tornava bem clara e definida, e nada difusa. Sabia que teria que agir, que queria, sim, participar da complexidade da vida. O melhor que tinha a fazer era tentar entender Isabela e seu amor.
Um dos contos vencedores do 13º Talentos da Maturidade
Promovido pelo Banco Santander.
Nesta edição não foi premiada nenhuma poesia.