... a cada dia, uma eternidade.
Faltam tábuas na frágil ponte do rio raivoso. Relâmpagos rasgam o céu escuro aonde o anjo guia a criança indefesa.
Na noite escura do pontilhão da linha de trem de Montes Claros, o anjo da guarda do quadro da sala se distrai e o mágico contador de histórias tomba entre dormentes, espatifa o crânio nas pedras.
Instala-se então o primeiro vazio; seca a circunspeta e sólida fonte de sentido para a incipiente existência.
Foi-se o amigo, o doador da moeda de prata, o colega de quarto, morre-lhe o avô paterno.
Oh, enormidade das folhas brancas!
Como é rápido o relâmpago!
Na noite escura da vida, segue sempre atento a tábuas faltantes, buscando encantamento em relâmpagos, tentando fixá-los de alguma forma, depreender deles o elo do entendimento.
Relâmpago! Breu que engolfa luz.
Em sua vida, relampeiam sempre rápidos flashes, sensação de um conhecimento fundamental. Faltam-lhe as conexões lógicas desse conhecimento. Talvez não apenas faltem. Pode ser mais uma questão de outra ordem: talvez nesse tipo de realidade não operem essas lógicas a que estamos acostumados.
As dimensões temporais e espaciais do universo são habitantes permanentes de suas sensações e reflexões e isso lhe traz uma jactante modéstia.
Hoje, mora só. Toma vitaminas, café frugal e sai.
Caminha atleticamente, todas as manhãs, religiosamente. Faz ginástica, dieta, fala pouco, escuta muito, sem saber, faz tudo como o avô.
Oh, correrias insanas! No meio de bilhões e bilhões de anos luz de tempo e de espaço, vê homens que vivem matando-se uns aos outros nesses poucos segundos que a eternidade lhes conferem, é algo com que não se conforma. Podiam emocionar o mundo, contribuirem para seu embelezamento, para os encontros, para a diminuição das distâncias entre as pessoas... para o entendimento.
Muitos contra-argumentam. De que adianta saber que o homem está em um relâmpago da eternidade se, para ele, esse relâmpago é tão longo?
- Oitenta e cinco anos e dois meses, completados ontem... a cada dia, uma eternidade - como sempre informa o Senador.
As coisas não são simples. As noções são imperceptíveis. Ou se fala delas insinuando ou espalhamos vácuos que, às vezes, sugam conhecimento. Palavras cercam mal os significados. Os não ditos abrem clareiras de desentendimentos que acabam por sutilizar o grotesco e mostrar as frestas da ignorância: são relâmpagos.
Pensa nas dificuldades da comunicação.
Participa de reuniões onde cada uma das pessoas parece falar a sós, pensando alto, sobre coisas das quais não têm muito entendimento ou sobre o que não muito elaboraram. Tentam, no barulho dos bares, discorrer sobre temas altamente complexos que requerem iluminação, reflexão, disciplina, talento e método. Ao buscar verdades, promovem despropósitos com o pensamento: açambarcam galáxias com o microscópio e submetem células ao telescópio.
Assenhoreiam-se de informações e reflexões repercutidas pela imprensa e, orgulhosos, titubeiam cócegas esparsas no monstro sonolento da ignorância.
A passagem do anjo incitando Santo Agostinho a colocar o oceano na concha do mar está sempre presente em suas cogitações. Não como um convite à ignorância, mas como um alerta quanto ao método adequado para se tentar conhecer.
Insondáveis regras operam o funcionamento do mundo. A ciência, que é diferente da técnica, apenas coleta algumas poucas e esparsas indicações de regularidades de alguns desses comportamentos. O fundamento básico sobre o qual se assenta a ciência é a fragmentação, a fragilidade e a perecibilidade do conhecimento. Não existe verdade aferida pela ciência que seja definitiva ou global. Para promover incursões na monolítica impenetrabilidade do mecanismo geral que governa o funcionamento do mundo a ciência se especializa. Percebe pequenos detalhes e se apropria de imediatas serventias, técnicas, desconhecendo totalmente as implicações gerais dessas interferências.
Lembra da conversa do empresário, dublê de pescador, com o índio das margens do rio Tocantins.
O empresário, em um iate, o índio na piroga. E o magnata incitava o nativo ao desenvolvimento de sua atividade. Aconselhava-o a comprar uma rede melhor, vender o peixe que não consumisse, comprar, com o dinheiro auferido, refrigeradores, barco melhor, etc. Montar peixaria, vender em São Paulo a produção. Ai o empresário concluía a prescrição:
- Você poderia estar como eu, morar em São Paulo e vir aqui de vez em quando pescar.
E o índio respondia:
- Mas pra que tudo isso , se eu já estou aqui sempre, sem ter que ir a São Paulo?
Ás vezes, se dão muitas voltas para se chegar de onde não se precisava sair. Conhecemos muito pouco da natureza e de tudo que nos faz mover.
No mais, estamos submetidos a uma indústria de produção de desejos que, atua sobre processos mentais insondáveis.
Perdas ensinam muitas coisas. Ensinam-nos que, por pensarmos que temos muito, também muito perdemos. Ensina também outra coisa: nada temos.
Somos um frágil átimo de percepção perdido na complexidade da eternidade.
O avô cai do pontilhão e ele perde as outras histórias que dele não mais ouvirá.
Cresceu, ficou adulto, mas ás vezes ainda se surpreende deitado no escuro, só, em uma daquelas camas patentes da penumbra do quarto antigo, acalentado pela voz daquele corpo que é recolhido sob o pontilhão.
A fugacidade da luz fotografa o instante perdido, e ele adormece segurando a moeda de prata.