Vim pra fazer amor

Morávamos no bairro do Prado, em Belo Horizonte, e voltávamos sempre a Brumal. A viagem começava na madrugada. Descíamos até a Rua Platina, tomávamos o bonde e, depois, a jardineira na Rodoviária. Era um Ford com estrutura de madeira e lata. No teto, colocavam-se as malas. Na época das chuvas, as bagagens eram cobertas por lona; na seca, amarradas com corda. Para subir ao bagageiro, usava-se uma escada localizada na parte posterior da jardineira.

Arrumar as malas era uma operação demorada. Durante o tempo em que motorista e ajudante levavam para realizá-la, os passageiros passeavam até a igreja da Rua Além Paraíba, onde pediam bênçãos para a viagem.

As pessoas mais velhas passavam água-benta com o sinal-da-cruz em suas próprias testas e nas das crianças. Pedro nunca entendia a razão daquele ritual. Para ir à escola, sim, fazia-se necessário. Difícil era suportar os martírios da permanência com pessoas estranhas, durante toda tarde, naquele prédio cinzento do Colégio Monte Calvário, de Belo Horizonte. Mas não era motivo para tais cuidados estar um dia inteiro no colo carinhoso da mãe, vendo Lagoa Santa, Campinho, Serra do Cipó, Conceição do Mato Dentro e, à noitinha, chegar a Brumal.

Em Conceição do Mato Dentro, almoçávamos na Pensão da Ubaldina. Numa mesa comprida, onde todos se assentavam próximos e conversavam sobre chuvas, estradas e pessoas.

Zé da Botica, que fazia corridas de jipe na região, derramava pimenta de garrafa no prato, amassava-as para receber o feijão inteiro e o angu, e contava as primeiras notícias de Brumal.

Naquela mesa renasciam o realejo, as rugosidades da cachoeira, o brilho azul dos olhos, o fremir enfumaçado de banhos, o jacaré de porcelana, as quitandas de Sababa e os mistérios de lembranças que o tempo, os tratores e os judeus errantes tentam destruir.

Esses pensamentos esvoaçam os escombros do casarão da Fazenda do Ribeirão do Coroado. Onde gerações haviam vivido, restavam agora só trastes quebrados, moitas de capim, alguns arbustos e até mesmo algumas árvores de porte. Aqui e acolá, pedaços da louça inglesa que em tantas ocasiões alimentaram inabituais nobres jantares.

Antes, naquela fazenda, escondeu-se um sobrinho de vovó Cássia, amante de requintes e de jantares, quando o acusaram de ter jogado a mulher pela janela de um edifício nas proximidades do Mercado Municipal de Belo Horizonte.

Foi para a fazenda depois de ter estado na casa de Laiana, de onde saiu temendo ser descoberto pela polícia, denunciado por vizinhos.

A morte aconteceu no mesmo prédio onde, em outro apartamento, encontraram morto um ator de televisão.

A TV Itacolomi encerrara suas atividades artísticas e ele transformou-se em mascate, com andanças por Brumal.

O corpo foi encontrado em adiantado processo de decomposição. Após o enterro, iniciou-se a exumação de fatos de sua vida recente. Entre lágrimas, sorrisos e reflexões, caixa por caixa, gaveta por gaveta, foram nascendo os vestígios de sua existência.

Encontrou-se no meio dos bilhetes trocados entre o morto e sua namorada mais jovem, engenheira do interior: “Querido! Vim pra fazer amor. Você não veio... que pecado!”

Fagundes, depois que deixou as luzes da televisão, não aspirava a grandes coisas, não seria político nem empresário. Seguiu vida simples, comprando aqui, vendendo ali, gozando de coisas do dia-a-dia, usufruindo de pescarias, cachaça, algumas mulheres e andanças na praia, nas férias.

Raw Lin Son
Enviado por Raw Lin Son em 28/11/2011
Reeditado em 03/02/2012
Código do texto: T3361449