O Grande Glutão
Em tempos já há muito idos, lá pros lados do povoado de São Simeão da Cascata, numa grota na encosta da Serra da Carapinha, morava o ‘Seu Tatão das Abroba’, agraciado pelo povo com tal alcunha, na época em que trabalhava com o plantio e a venda do curcubitáceo fruto.
Seu Tatão, de lavrador trabalhador e esforçado, passou em alguns anos a fazendeiro razoavelmente bem sucedido, mas conservou sua natureza de homem simples, bonachão, alegre e festeiro, e a despeito dos conselhos e das constantes repreensões de Dona Almerinda, sua mais que pacienciosa esposa, comia como se o próprio respirar dependesse disso. Era um guloso de mão cheia, ou de prato cheio, que cabe melhor ao caso.
Suas festas, que se realizavam sob o pretexto de ‘Festa da Colheita’, eram memoráveis, fornidas de tudo que a gula tinha direito, e os comilões e esfomeados de plantão, obviamente que não perdiam um só dia de seus festivais gastronômicos, que costumavam durar por cinco dias, pra consternação e desespero da boa Dona Almerinda, que já imaginando as mesas no terreiro repletas de toda sorte de tentadoras guloseimas, suspirava:
_ Ai, Senhor! Um dia vou acabar tendo problemas com um desses gulosos. Deus me livre, que tenho até medo de que um deles morra no meu terreiro, de tanto se empaturrar de comida.
E quase o dito se torna o feito. E o guloso que quase a fez ter um ataque do coração foi seu próprio marido, o Seu Tatão das Abroba. Já enfadado com seus 'festivais de comidaria', que segundo o próprio, estavam ficando muito enfadonhos, resolveu inovar. Mandou anunciar na vila de São Simeão que na próxima festa, marcada para a semana, comeria um boi inteiro assado no rolete, para que todos vissem e atestassem sua supremacia regalona.
A boa Dona Almerinda, que a essa altura dos acontecimentos já beirava à exasperação, fez de tudo para dissuadi-lo da ideia, mas não adiantou. Seu Tatão se encontrava por demais animado com a novidade que ele mesmo alardeara, e reprimia os conselhos da esposa como se fosse ela quem estivesse prestes a cometer uma enorme bobagem:
_ Mas deixa de ser teimosa, mulher. Pare de me perseguir com essa conversa de que não vai dar certo. O que pode dar errado? Afinal, é só um boi. E nem é dos maiores. E de mais a mais, não posso decepcionar meus convidados. Aqui é assim: Tudo conforme o anunciado.
Dona Almerinda desistiu de convencê-lo. Tomou carreira pra cozinha e tratou de começar a dar as ordens à Rosalva e Jurema, suas duas ajudantes de cozinha, pois já era hora de começar os preparativos, tudo para “agradar aquele bando de porcos gulosos, que pareciam não saber fazer outra coisa na vida a não ser se entupir de comida e arrotar”. Fato é que, resmungos à parte, não conseguia mesmo era desagradar o seu querido Tatão.
E assim foi. Chegou o dia do tão anunciado, aguardado e grandioso festival, e o quintal de Dona Almerinda parecia um grande formigueiro humano. Atraída pela notícia de que ‘O Grande Glutão’ (porque a essa altura Seu Tatão já tinha até um novo apelido, nascido na boca do populacho) iria comer um boi inteiro, a mais variada gama de vendedores de toda sorte de badulaques e especiarias, instalou-se no quintal de Dona Almerinda.
Chegaram aos poucos e foram levantando suas coloridas e remendadas barracas, e a pobre ‘anfitriã a contragosto’, refugiou-se à beira do fogão de lenha, resignada, preparando os últimos acompanhamentos para o espetáculo gastronômico do seu guloso marido.
Lá fora, o burburinho era ensurdecedor: palhaços às piruetas, vendedores anunciando suas mercadorias aos berros, barracas onde os homens apostavam quem bebia mais pinga sem titubear, bancas de tiro ao alvo e roleta, moleques a se engalfinharem com o mastro do pau-de-sebo, mocinhas que passeavam esperançosas de ganhar uma maçã-do-amor e encontrar um bom partido por entre os visitantes, enfim, toda sorte de festeiros, de meros curiosos a animadíssimos fanfarrões.
O boi já brilhava a girar no rolete e era regado o tempo todo por molhos de ervas especiais, afinal, ‘O Grande Glutão’ não poderia comer um boi insosso. Tal empreitada merecia uma carne amaciada com os melhores temperos.
Hora chegada, um silêncio quase que sepulcral tomou conta do terreiro. Todos tinham a atenção voltada para Seu Tatão, que a cada novo e bem fornido naco de carne engolida, tomava uma grande caneca de vinho ‘Sangue de Boi’, que segundo o próprio ventilava, “é um santo remédio para ajudar na digestão”, o que na verdade, era muito mais uma frase moralmente compensadora do que um fato que se soubesse comprovado. E a cada nova caneca de vinho que sucedia um bom pedaço de boi, os vivas e hurras se faziam ouvir a centenas de metros do quintal de Dona Almerinda.
A gritaria durou por toda a noite, até que depois de lamber o último osso do finado, temperado, e assado bovino, Seu Tatão engastalhou. Ficou paralisado, os braços pendidos, o corpo completamente travado na cadeira, os olhos arregalados e fitando o vazio.
Dona Almerinda veio correndo em seu socorro, ofegante e alvoroçada. Quando percebeu que o marido estava completamente estacado, dispensou a festança, mandou os convivas embora, e tratou de cuidar de seu homem, é claro, não sem uma saraivada de reclamações, enquanto ajuntava todas as ervas com propriedades digestivas que conhecia e as botava em infusão na chaleira, e mandava a reprimenda:
_ Tá vendo, seu guloso? Eu não disse que isso não ia dar certo? Onde já se viu um despautério destes? Querer comer um boi inteiro... Só na sua cabeça lesa mesmo. Espera que eu já vou te servir um chá dos bons pra ver se ajuda na digestão.
E lá ficou Seu Tatão, embatucado, esperando pela caneca de chá.
Quando Dona Almerinda veio da cozinha e lhe entregou a caneca esmaltada, daquelas de servir café de rapadura, que abarcam no mínimo meio litro, Seu Tatão olhou-a profundamente, e num esforço descomunal, com uma voz completamente rouca e vinda do fundo da garganta, conseguiu ainda balbuciar:
_ Tem rosca?