UM FUTURO NO PASSADO

O homenzinho de tronco arqueado levantou a voz pra dizer que só falaria de mansinho. Apontou o dedo, e desejou não tê-lo. Teve um pensamento perverso, balançou a cabeça para atirá-lo longe. Foi buscá-lo para ter certeza de que tinha sido seu o pensamento e teve nojo de si mesmo. Lembrou-se do ato perverso, repugnou-o. Lembrou-se ator do ato, repugnou-se.

O homenzinho de cabelos ralos deu um passo para frente, olhou em volta desconcertado e deu dois para trás. Sentiu o mal cheiro, e sabia que não podia escapar, pois exalava de seu próprio corpo. Viu suas mãos imundas, mas não viu as lágrima em seus olhos. Viu, ao invés disso, um mundo turvo.

O peso do oceano em seus olhos lhe inclinaram a cabeça à baixo. Viu seus pés, descalços. Viu seus movimentos falsos. Viu os dedos sujos com terra limpa. E então viu uma pequena lagoa no chão, no formato e tamanho de seu próprio pé. Viu-se, após anos incontáveis, e irreconheceu-se.

Reconheceu-se, e irreconheceu-se novamente, e mais uma vez, como a luz antiga no quarto empoeirado que custa a acender. Viu sua pele rasgada pelo vento, viu seus pêlos eriçados pelo medo, viu sua alma esgotada pelo tempo. Viu seus olhos e seus olhos o viram. Por fim, a luz se acendeu, e ele reconheceu-se de uma vez por todas.

Viu crianças brincando no minúsculo lago e viu sua mirrada figura, ainda jovenzinha, inerte no meio de tudo. E as ondas provocadas pelas descompassadas braçadas juvenis atingiram sua silhueta garota como um tsunami de alegria, e ele se pôs a movimentar. Reconheceu antigos amigos e abraços perdidos. Ouviu histórias de crianças, de terror e esperanças. Perdeu seu olhar no futuro e viu um futuro imaculado. Viu um futuro ingênuo e era o único mestre de seu universo. Um futuro bonito, e nada além disso, apenas bonito. Essa ingenuidade não necessita de mais do que uma palavra para descrever a beleza, pois diferente de sua prima oposta, a beleza não tem forma complexa.

O menino foi arrancado de seus pensamentos quando a primeira gota gelada lhe atingiu a rosácea pele lisa de cera. Nada dessincronizado para sair do lago, cada criança acelerando-se aos risos à borda mais próxima. O lago esvaziou-se, e o pequeno homem percebeu que a chuva pesada caía-lhe dos olhos-nuvem carregados. Sua tosse seca, trovão. Fazia chover no passado suas lágrimas do presente. Não percebera isso quando estivera no lago pois jamais chegou a olhar para cima, para a cúmulus-íris que os vigiava. Inundava o passado que o sufocara.

Desconectou seus olhos do minúsculo lago e olhou para frente. Já vira seu passado no divertido lago, e seu presente no turvo reflexo. Olhou adiante e viu seu futuro. Viu tudo aquilo que corria afobadamente em sua direção e ainda não era seu. Entendeu que, por direito, deveria agarrar o tempo que lhe escapava em direção contrária. Decidiu nadar contra essa correnteza, e não a seu favor, sorvendo o máximo de água que a corrente podia lhe garantir. Viu um futuro bonito. Bonito e nada mais. Desprovido de medo, decidiu nadar até a exaustão do frágil corpo. Decidiu nadar até afogar-se um dia no rio infinito.

Foi quando o arrependimento encontrou coragem para seguir adiante e nunca mais desejou olhar para trás. Apenas à frente.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 24/10/2011
Reeditado em 04/11/2011
Código do texto: T3295704
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.