TEMPESTADE - 86
TEMPESTADE – 86
Rangel Alves da Costa*
Surgia, então, perante Tristão e Suniá, uma questão crucial: o comprometimento com a vida sacerdotal teria o dom de impedir o devotamento ao amor terreno, ao querer amoroso entre duas pessoas, ao desejo de partilharem juntas as situações da vida em comunhão conjugal?
Na verdade, mesmo tendo crescido sob os ditames da extrema religiosidade familiar, pois sua avó sempre fora apegada às coisas da igreja, aos ensinamentos bíblicos, temendo o pecado em tudo e fazendo da fé um dos pilares de sustentação da vida, o rapaz jamais se sentiu impelido, por vontade própria, a seguir a vida sacerdotal.
Sua opção em entrar para o seminário e se preparar, através do estudo e da devoção, para servir à igreja, não teria sido por vontade própria, por um sentimento íntimo que objetivasse o sacerdócio, mas por força de uma promessa de sua mãe. Ao invés de prometer aquilo que ela mesma deveria cumprir, optou por oferecer o seu menino, sem ouvir sua opinião ou desejo, à vida religiosa.
Sabendo de tal promessa e aceitando o fato como uma dádiva familiar, quando a genitora do menino faltou, sua mãe, enquanto avó e doravante responsável pela criação, fixou-se cegamente naquela promessa feita e assim que o menino alcançou a idade prevista colocou-o num seminário.
Já estava bastante adiantado nos estudos, já tendo visto e revisto as lições de filosofia e teologia e no estágio que ia brevemente receberia o sacramento da ordenação. E se isto acontecesse tudo seria mais difícil, seria a prova definitiva da abdicação pelo seu grande amor terreno, pela bela Suniá. Isto porque ao receber o Sacramento da Ordem, num gesto simbólico, terá que se despedir da família e sair do meio do povo, para apresentar-se ao bispo ordenante e dizer: “Aqui estou”.
Esse aqui estou significaria também voltar-se unicamente à vida sacerdotal e distanciar-se da sua vida comum, dos prazeres da sua idade, dos anseios do coração. E por força desse destino teria que esquecer também todo amor existente pela bela professorinha, todos os planos e sonhos ao lado dela, tudo que alegremente tanto sonhou para os dois.
Contudo, mesmo já vendo em pensamentos o lindo neto todo paramentado e celebrando missa, com igreja repleta de fieis, cânticos cristãos maravilhosos e anjos voejando por todos os lados, a avó do seminarista, inesperadamente, praticamente quebrou a validade da promessa feita pela filha assim que se viu na iminência da morte do rapazinho.
Quando afloraram os maus presságios, as intuições negativas e as premonições, bem como quando supostos vestígios da alma do neto apareceram para anunciar a despedida e a morte, ela não só se apegou à sua força de fé, às preces e orações, mas também fez aquilo que seria totalmente impensado.
Por via dessas contradições da vida, o sofrimento fez com que ela se tornasse mais racional, menos fanatizada pelas coisas religiosas e muito mais coerente com a realidade. Reconhecendo o neto como pessoa adulta, maior, capaz, dotado de inteligência e vontade própria, concluiu que o seu destino não caberia ninguém decidir senão ele mesmo, que não poderia mais forçar que ele fizesse isso ou aquilo, continuasse numa caminhada que talvez não fosse a sua nem a que realmente desejava.
Então prometeu, de joelhos diante do oratório, com o terço nas mãos e o coração cheio de decisão, que se tudo aquilo dizendo respeito à morte do neto não passasse de meras aparições, de imagens construídas pela mente aflita de uma avó, que dali em diante chegaria perto dele, o chamaria para conversar e diria que se quisesse repensasse sua permanência no seminário, sua vocação sacerdotal e que estaria livre para seguir aquilo que o seu coração achasse melhor. Que namorasse, que amasse, que procurasse se unir amorosamente à mulher que pretendesse. A liberdade de um homem lhe permitiria fazer, com a responsabilidade que deve ser peculiar a quem é tem boas virtudes, o melhor que desejasse.
Por sua vez, lá no seu recanto de sofrimento e aflição, a mãe de Suniá prometia exatamente o contrário. Desde algum tempo que olhava para a filha e a via com a doçura de uma freira, de uma pessoa consagrada à obra divina. Tão meiga, tão casta, tão doce, pura, muitas vezes dizia a si mesma que aquele mundo cheio de maldades e de olhares maliciosos não caberia para sua filha nele permanecer.
E sentia que ela havia realmente nascido para ser freira, para o celibato e para ter uma vida inteiramente dedicada aos serviços religiosos, desenvolvendo obras de caridade, de educação a crianças e jovens, entre outros tipos de apostolado. Sendo professora, acostumada a lidar com os alunos como se fossem seus filhos, já tinha aptidão para isso tudo.
Encontrando na filha todas as características da vocação para a vida religiosa, mesmo que ela jamais soubesse o que a mocinha pensava ou se já tivesse pisado num convento, verdade é que a mãe, ali também de joelhos diante da vela acesa num canto do quarto, fez uma sublime promessa. E prometeu que se voltasse viva pra casa tudo faria, a partir daquele instante, para que ela fosse viver num convento e se tornar freira.
continua...
Poeta e cronista
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