TEMPESTADE - 83
TEMPESTADE – 83
Rangel Alves da Costa*
Diferentemente do que ocorrera com o seminarista e a professorinha, o remédio dado por Teté a Fabiana parece não ter surtido efeito, ao menos na rapidez que agiu sobre os demais adoentados. Por culpa do marido e sua teimosia, a coitada da mulher continuava mole, estirada no sofá, com o corpo mais parecendo uma fornalha e uma vermelhidão pelo rosto de assustar.
O marido Antonio, desde muito conhecedor do seu erro e por isso mesmo agora em tempo de morrer por tanta culpa, continuava num desespero que chegava a dar dó. Era realmente triste ver o homem assim, de joelhos perante a esposa, fazendo uma prece atrás da outra, chorando de não acabar mais. E num instante que o soluçar permitiu confessou:
“Fabiana, minha Fabiana, que Deus lance sobre você suas bençãos pra que a cura venha logo, venha como um raio de luz, como uma coisa boa que acontece sem ninguém esperar, pois confesso que prefiro partir junto ao seu corpo se a morte lhe roubar a vida. Até eu poderia morrer em seu lugar, já que fui o grande culpado por tudo isso estar ocorrendo. Que me leve, então, e não a você, que sempre foi a esposa perfeita, a mulher boa, a dona de casa que todo homem sempre desejou ter. Já errei muito, também confesso, já fiz coisas que certamente não foi do agrado ao coração de Deus, e nem ao seu, se soubesse das besteiras que já fiz. Tento me redimir me aproximando cada vez mais das lições da bíblia, dos mandamentos sagrados, das coisas boas de Deus. Mas não sei até que ponto merecemos ter os nossos erros reparados, já que neste momento parece que toda minha fé está em desvalia, parece que o amparo divino me abandonou e me vejo à beira de um precipício quando olho e lhe vejo assim. Mas nesse momento, como prova de que preciso das forças divinas em meu auxílio, mais uma vez quero prometer, com a verdade que jamais me expressei na vida, que se sua doença for embora e a saúde tomar conta novamente do seu corpo passarei um mês inteirinho andando descalço, dois anos sem colocar qualquer tipo de carne vermelha na boca, rezarei todos os dias cem ave-marias, vestirei de branco do amanhecer ao anoitecer durante um ano, e também durante um ano todos os dias sairei de porta em porta anunciando a palavra do Senhor. Se isto for pouco digo mais...”.
E de repente, do nada, do meio da escuridão e do vazio da sala, ouviu uma voz acima do seu ombro dizendo: “Não diga mais nada, não prometa mais nada, tenha apenas fé. A fé irá curar sua esposa!”.
Levantou assustado, procurou enxergar alguém por ali, olhou para todos os lados procurando avistar algum sinal, mas tudo continuou como antes. E num instante compreendeu o que poderia ser aquela voz e aquela presença e se ajoelhou novamente, orando mais forte do que nunca, agradecendo a presença de Deus. E ainda de joelhos, de olhos fechados e as mãos em oração, continuou ouvindo, dessa vez com sons meigos, suaves, macios, vindos de todos os lugares da sala:
“A Bíblia diz em no Evangelho de Mateus 4:23: E percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino, e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo”.
“A Bíblia diz em João 20:29-31: Disse-lhe Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram. Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”.
“A Bíblia diz em Êxodo 15:26: Se ouvires atentamente a voz do Senhor teu Deus, e fizeres o que é reto diante de seus olhos, e inclinares os ouvidos aos seus mandamentos, e guardares todos os seus estatutos, sobre ti não enviarei nenhuma das enfermidades que enviei sobre os egípcios; porque eu sou o Senhor que te sara”.
“A Bíblia diz em Salmos 107:20: Enviou a sua palavra, e os sarou, e os livrou da destruição”.
“A Bíblia diz em Tiago 5:14-15: Está doente algum de vós? Orem sobre ele, ungido-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados”.
E por fim, disse, para surpresa maior de Antonio: “A fé de um bom esposo salvou a vida de uma boa esposa. Que o erro cometido e perdoado não seja motivo para impedir a cura e preparar o espírito para a salvação”.
Quando a voz silenciou, Antonio ouviu outra voz chamando baixinho pelo seu nome. Era Fabiana, voltando do sono profundo e tormentoso dos enfermos e perguntando onde ela estava. E o esposo levantou, ergueu as mãos para o alto, deu graças ao Senhor e em seguida foi de encontro à esposa, trazendo-a a realidade.
Distante dali, no vão encharcado onde ainda continuavam abrigados depois de terem sido levados pela correnteza, expulsos da casinha pelo teto que quase ruiu por cima dos dois, os pais da mocinha Inácia, sentiam-se felizes por haverem sido duplamente salvos, do teto que caiu e das águas vorazes que os arrastou até ali, até surgir uma mão sem rosto para lhes puxar da correnteza e salvar.
Ele, bem juntinho dela, agarradinhos, ouviu espantado quando a esposa falou: “Acho que tô malucando, mas vi um passarinho passar voando. No meio desse tempo feio e tempestuoso, noite de breu e de desgraceira, é impossível que um passarinho passe voando lá fora. A não ser que...”.
“O que, mulher?”, apressou-se o homem a perguntar. E ela respondeu solenemente: “A não ser o passarinho que veio anunciar que as chuvas não vão demorar pra passar. Não foi assim com a arca de Noé?”.
Então ele prosseguiu mais encorajado:
“É mesmo mulher, tem uma passagem na bíblia, no livro do Gênesis, que diz bem assim: Noé esperou mais sete dias, e soltou de novo a pomba fora da arca. E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico uma folha verde de oliveira. Assim Noé compreendeu que as águas tinham baixado sobre a terra. Esperou ainda sete dias, e soltou a pomba que desta vez não mais voltou. No ano seiscentos e um, no primeiro mês, no primeiro dia do mês, as águas se tinham secado sobre a terra. Noé descobriu o teto da arca, olhou e viu que a superfície do solo estava seca. Aqui mais tarde vai ser assim também.
continua...
Poeta e cronista
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