A SOLIDÃO DE QUEM AMA
- Estou apaixonado por outra mulher... – e mais uma vez viu-se livre.
Tudo o que via em seguida já lhe era esperado: os pulmões esvaziando-se num baque com o impacto das palavras, o lento desmoronamento das linhas da face, a testa se franzindo em busca da resposta inexistente, a inundação dos olhos que asfixia a esperança do amor perdido. Após isto, porém, cada uma tinha a sua própria reação. Algumas davam gritos ininteligíveis de juras e injúrias de amor, outras jogavam objetos e tentavam lhe desferir tapas, e ainda tinham aquelas que se despediam sem dizer uma palavra sequer. Conhecia todos estes tipos e sabia perfeitamente como se sair em cada caso. Nunca, é claro, se passava por culpado: “O amor não tem endereço”, “Um coração não pode ser acusado pelo crime da paixão”. Falava fluentemente a língua dos inocentes e, na maioria das vezes, conseguia provar que o pecado não era seu, mas de um mundo, incompreensível e injusto, que permite tanto amor.
- Estou apaixonado por outra mulher... – e uma outra mais se desfazia em prantos.
A verdade é que jamais estivera apaixonado por outra. Aliás, jamais se apaixonara por ninguém. Não o fazia por diversão, pois não era sádico (pelo menos não aos sábados), nem achava divertido vê-las sofrer. Sentia-se extremamente aborrecido quando lhe chegava o momento de fazer seu breve discurso derradeiro, mas, simplesmente, achava menos trabalhoso dessa forma. Não precisava se explicar, expondo seus julgamentos morais ou tecendo a malha dos acontecimentos de sua vida. Gostava delas, de todas elas, e por gostar acabava abrindo-lhes a porta da casa e as janelas do cotidiano. Deixava-as invadir sua vida e gostava disso. Mas, convicto, sabia que o fim chegaria. Encenava, cada vez com uma atriz diferente, a peça de teatro de uma história de amor que jamais acabava em par, e se encerrava sempre dizendo:
- Estou apaixonado por outra mulher... – e aplaudia de pé, sozinho, o ato final de mais uma história.
Ainda podia se lembrar da primeira vez que o tinha dito, pouco antes dos dez anos completos. A pequena mocinha dos cabelos encaracolados se auto-intitulava sua namorada, e ele gostava, pois era a mais linda das garotas de sua sala. Mas repentinamente começou a achar tudo muito chato, pois preferia correr pela rua a ficar participando das cirandas às quais era convocado pela namoradinha. É verdade que não se lembra onde foi que ouviu ou leu a frase que lhe seria clichê por tanto tempo, mas chegou seguro à escola naquele dia, a passos curtos e firmes e chamou-a em um canto, segurando-a pelas mãos. Olhou bem fundo em seus olhos sorridentes, que pareciam esperar a oficialização de uma fantasia sem vilões. Sentiu medo e suas mãos começaram a suar. Quanto mais se demorava, maior era o sorriso da pequena namorada. “Gosto dela!” pensou ele “Mas não gosto tanto assim”. E cuspiu seu fogo de dragão na face da pobre princesinha:
- Estou apaixonado por outra mulher... – e assistiu pela primeira vez, apavorado, ao fim do drama.
Não se pode culpá-lo por completo, pois a raiz da árvore de sua ação não era podre como as frutas que concebia. Era covarde por usar uma mentira para justificar seu intuito, mas achava injusto dividir a mesma cama em que repousa um coração rubro de paixão, junto a seu coração, oco e vazio, que ainda só pensava em correr pela rua. “Por que continuar alimentando um coração apaixonado?”. Quando estava só sentia a liberdade bater-lhe o peito mais forte que o coração, mas era só qualquer uma delas se aproximar demais que seu peito começava observar de perto, com efeito de comparação, que seu coração não era capaz de se encher como aqueles corações ávidos. A proximidade era uma afronta, um desafio covarde a um coração incompleto que não conseguia se fazer encher. E, estando junto, sentia-se só.
- Estou apaixonado por outra mulher... – e nocauteava o desafiante com o golpe proibido.
Antes da última vez que se permitiu a sentença, reencontrou uma antiga colega de classe andando pelas ruas de uma praça. A pequena princesa dos cabelos encaracolados tinha se transformado em uma bela rainha dos tempos modernos. A pressa da cidade grande obrigou-os a trocar telefones e combinar de se encontrar em outra hora. Não foi difícil perceber a grande química que ainda os ligava. Voltaram a se encontrar algumas vezes e, logo, se envolveram. Conversavam sobre tudo, mas jamais tocaram no assunto da decepção amorosa infantil. Gostavam-se cada vez mais. Ela se envolvia com ele, como todas as outras mulheres se envolveram, mas ele, por outro lado, mudara completamente. Formigava-lhe a pele quando a via. Sentia vontade de lhe telefonar nas madrugadas e gostava de ficar acordado para vê-la dormindo. A solidão, que antes sentia próximo ao par, sentia agora apenas quando estava longe dela. O coração outrora posto à prova não era mais desafiado à luta, mas convidado à valsa. Dançavam nus e desinibidos, pintando de vermelho vivo e cintilante todos os caminhos pelos quais desfilavam.
Quando o coração por fim transbordou, sentiu a paixão alastrando-se exibida por todo o corpo. Infestou cada músculo, cada junta e cada nervo, transpondo sem dificuldades as barreiras da antiga concepção, afinal, a solidão de quem ama é a liberdade. Convicto de sua fantástica descoberta decidiu permitir-se. O sentimento se materializava em belas palavras que jamais antes lhe fizeram sentido, e misturavam-se divertidamente em seus pensamentos. Gozava do prazer da visão de um mundo nunca antes compreendido e desejava fervorosamente compartilhá-lo com a única pessoa com a qual gostaria de dividi-lo. Um mundo que só é permitido, com efeito, habitarem duas pessoas apaixonadas.
Prostrou-se frente a ela e olhou bem fundo em seus olhos sorridentes. Tentava laçar as palavras que antes dançavam arteiras em seus pensamentos, mas que agora se demonstravam desordeiras e turbulentas. Não conseguia apanhá-las, pois elas pareciam escorregadias e selvagens. Tentou abrir a boca, mas nada saiu. Uma-a-uma as palavras foram desaparecendo em pequenas explosões zombeteiras no salão de festas de seu cérebro. Por fim não restou nenhuma. Tentou formar alguma frase com as velhas palavras que ainda lhe restavam, e a única que conseguiu formular foi:
- Estou apaixonado por outra mulher... – e nada mais lhe saiu da boca.
Emudeceu por completo, pois não conseguia explicar o terrível engano. As lágrimas varreram-lhe a face endurecida. Era prisioneiro de suas próprias palavras, vítima de seus próprios crimes. A reação daquela que o amara já lhe era conhecida, pois esta era a segunda vez que ouvia as mesmas palavras ferozes da mesma boca impiedosa. Ela ainda tentou insistir no tempo, esperando que ele lhe confessasse o engano, a brincadeira estúpida, mas este só foi capaz de balançar a cabeça, confirmando a sentença ignóbil. Não afirmava o sentido literal da frase, mas a própria vergonha de não conseguir pronunciar nenhuma outra. Quando viu aquele corpo abandonar-lhe pela porta, não tendo mais tempo para se explicar, o coração esvaziou-se.
E jamais se apaixonou por outra mulher.