QUANDO OS OLHOS SE FECHAM

Quando as pálpebras perderam a força, no mesmo instante em que em que o último suspiro persistiu, aqueles plácidos olhos tiveram a certeza de que jamais poderiam voltar a enxergar novamente. Por esse motivo demoraram-se a fechar, se despedindo tristes e resignados, tentando captar cada detalhe, saboreando cada tonalidade insossa, cada formato nauseabundo, cada movimento lânguido. Tudo isso lhes parecia incrivelmente belo agora. Prolongaram-se na vida como o corpo frio no banho quente, frouxo e preguiçoso, evitando a todo custo o momento da despedida. Por fim, selaram-se.

Ficaram em estado de torpor e angústia, sem nada ver, pelos momentos em que a energia elétrica ainda passa pelos membros do corpo, certificando-se que nenhum dispositivo será deixado funcionando abandonado e inválido. Aguardavam apenas o momento em que simplesmente deixariam de ser, perdendo para sempre qualquer esperança, ainda que vencida. Porém, tão logo a vida abandonou o corpo, os olhos abriram-se novamente.

Foi difícil enxergar algo no início, pois a luz que inundou os olhos possuía um brilho potente e obrigava os olhos a se fecharem novamente no ato reflexo. A paciência do portador dos olhos era menor que sua ansiedade, e mal os olhos se fechavam, em busca de alívio, já voltava a abri-los novamente. Ainda não era capaz de acreditar na oportunidade que lhe fora permitida, e desejava avidamente enxergar o mundo novo e completamente desconhecido com que fora agraciado.

Mas quando pode discernir pela primeira vez uma imagem, um prazer de intensidade muito maior a do gozo invadiu seu corpo, que tremia em celebração. Cores e formas inacreditáveis eram refletidos em sua íris, nada nem ao menos perto de tudo o que já imaginara. Não conseguia separar o que era belo do que era feio, pois já não era uma tarefa possível. A beleza e a feiúra abraçavam-se resolutas e incorruptíveis, amantes vorazes saciando com malícia um amor proibido pelas diferenças, consumando seu desejo de união e tendo como fruto algo muito além da perfeição e da fealdade.

- O Paraíso... - suspirou.

O que via era, de fato, indescritível, pois não tinha aprendido a descrever aquilo que enxergava. Seus olhos, antes débeis e cansados, pareciam agora ter rejuvenescido, e pululavam alegres, como crianças em um parque veraneio, indo de uma imagem sem nome à outra cor sem sobrenome. À procura de algo sem nome, olhou para sua esquerda e pode, finalmente, reconhecer a primeira imagem.

Sua mãe, com o rosto miúdo e piedoso, olhava-o com orgulho e satisfação. Depois de tanto tempo seu filho podia, enfim, encarar-lhe e usufruir de todos os benefícios que os olhos maternos proporcionam: a lição que não se aprende nas palavras, mas no olhar compreensivo; o carinho que não se recebe com um afago, mas com o olhar afetuoso; a segurança que não se recebe no abraço, mas no olhar coruja de vigia incansável. Saboreou aquele instante prazerosamente, sem permitir que os olhos se fechassem por um segundo sequer, com um medo pueril de perder para sempre aquele fluxo infindável de amor que lhe enchia o peito.

Os dias que se seguiram foram de ávida busca por conhecimento. Deliciava-se com o mundo desconhecido, sempre ao lado de sua mãe, que lhe explicava os mistérios de um mundo nunca antes visto. Deliciava-se e deixava-se rir pelos menores detalhes. Procurava saber o nome de todas aquelas cores desconhecidas. Criava analogias para cada tipo de brilho, sendo por excesso ou falta de luz, para sentimentos e sensações que só ele sabia descrever. Tentou descrever tudo com palavras, mas nada do que via lhe foi possível classificar pela beleza, pois as palavras que definiam suas incongruências não lhe faziam sentido algum.

Resolveu que era hora de cumprir a promessa que fez mentalmente assim que pôde olhar nos olhos da mãe, pois já não sentia mais o medo que o impedia de fazê-lo. Com uma flor em mãos, seguiu resoluto em direção a seu destino. O lugar deu-lhe calafrios, e pela primeira vez via algo que gostaria de evitar, mas sua covardia foi apenas momentânea, e não lhe impediu de encontrar facilmente o pequenino monumento de granito. O túmulo encerrava o corpo que carregara outrora os olhos cansados. Uma mistura de tristeza e gratidão dominou-lhe, e ele começou a falar:

- Obrigado, honrado amigo, por ter me dado a oportunidade de enxergar o que foi me negado por toda a vida. É uma pena que eu jamais tenha te conhecido, e nem possa te dar um abraço em forma de agradecimento, pois já partiu do mundo dos vivos. Mas você não se esqueceu de deixar para trás, ainda, um pouco de vida. Sei que alguns lhe devem mais que apenas a simples permissão de enxergar, mas o prolongamento da uma vida tranqüila e sem dores, e mesmo assim quero que saiba que não foi apenas seus olhos que me deu como presente, mas um mundo completamente novo, como jamais eu me atrevi a imaginar.

Colocou a flor sobre o túmulo e com uma lágrima descendo pelo rosto, concluiu com a voz tímida e rouca:

- A vida é o paraíso...

Uma forte corrente de vento soprou sua fronte, fazendo seus cabelos agitarem-se como as folhas secas espalhadas pelo chão. Suspirou profundamente o ar gélido do cemitério, abaixou a cabeça e fechou seus olhos em respeito ao digno finado.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 03/03/2011
Reeditado em 04/11/2011
Código do texto: T2826884
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