O LIVRO ESPELHADO

As páginas do livro iam se tornando mais pesadas quanto mais perto chegava o fim da história. Pareciam exigir, além da míngua força física necessária para se deixar uma folha para trás, o esforço psicológico. O labirinto intricado que tornara a trama densa escancarava seus caminhos, revelando não mais os desvios de caráter apenas, mas as virtudes de cada personagem. As respostas explodiam na face frágil do leitor, todas de uma vez só, com uma potência instantânea e devastadora, como a explosão do Big Bang que dá origem ao universo que compõe um livro. A mão invisível que emerge da página do livro modelava suas expressões sisudas brincando de massinha em um rosto que buscava a compreensão cabal.

O homem se desfazia em reflexões, pensamentos, lembranças e lágrimas, e através do mundo do livro se via capaz de compreender o seu próprio mundo. Um espelho para outra dimensão, que era a sua própria, mas completamente decifrada. Solitário, revoltava-se por não ter sido capaz de entender antes o que agora lhe parecia óbvio. Os horrores do mundo e do homem; a ignorância, a intransigência, o egoísmo, a maldade.

Nadava sozinho contra correnteza moral do herói, pois não é esta a principal personagem de uma obra, mas o vilão. É da figura sinistra do vilão que emergem os pecados originais e as doenças da alma. Só através deste corruptor é que as regras podem ser quebradas, pois é o amor pelo ato da maldade que ratifica o verdadeiro vilão. É a partir de suas atitudes vis e pensamentos malignos que se pode extrair a razão da bondade, e não da atitude clichê do herói. Era dele que conseguia extrair suas melhores reflexões, e era, portanto, seu espelho.

Fechou a última página e se viu imerso em um furacão de sensações, um tufão descontrolado de aspirações, um espiral confuso e veloz de lembranças. Sentia o medo de que a última página do livro da própria vida não se concluísse tão encantadora como o livro, pois todo bom livro se despede cheio de significado, deixando-nos a reflexão profunda ou a divergência polêmica, mas concluí-se afinal, legando sua lição.

Tentou imaginar como seria o final do livro que conta a história de sua própria vida, se terminaria dizendo “Então seus olhos se fecharam e tudo teve fim.” Mas não o agradava nem um pouco, um fim menor que a própria vida. Preferiria algo sublime como o final do livro que lera, conseguindo resumir toda a personalidade de uma história em apenas uma frase: “Uniram-se docemente, como se une o açúcar à boca da criança amargurada, tão efêmero quanto o último suspiro de uma vida, tão imortal quanto o primeiro.”

Passou a mão por sobre a capa do livro, que era a sua favorita. Não exibia uma imagem apenas, mas uma diferente cada vez que mudava de lugar ou de posição. Metamorfoseava-se como um camaleão dependendo de seu habitát, das cores e sutilezas do ambiente, afinal sua fronte era um espelho. Isso permitia que o livro transforma-se cada lugar que se encontrava em seu principal cenário, o palco central da história, como se tivesse sido confeccionado e escrito especialmente para estar onde quer que estivesse. Como se a história do livro contasse a vida daquele que o lia.

A porta se abriu abruptamente e o homem foi arrancado com violência do abismo profundo de seus pensamentos. Sua expressão que a pouco se desfazia em contrações de parto voltara a ser enrijecida, como lhe exigia sua patente. O jovem que entrou arfando afobado começou a falar em tom de solenidade, mas com firmeza subordinada:

- Senhor! Dois adultos e uma criança foram capturados na floresta, dentro de nossas linhas. Vinham andando pela beirada do rio quando nós...

- Armados?

- Não, Senhor! Dizem que estavam à procura de lenha. Dizem ser uma família, Senhor!

- E qual é a sua opinião?

- Senhor, os tempos são duros. As temperaturas andam matando até mesmo nossos soldados.

- Responda a minha pergunta. Você acha que são rebeldes?

- Senhor...

- Não tem medo da guerra, mas tem medo de dar uma simples opinião?

- Senhor, nós capturamos eles perto do rio, longe do campo de operação dos rebeldes...

- E o que você acha?

- Acho que são, de fato, uma família, Senhor. Parece improvável que sejam rebeldes.

- Compreendo...

- Como devemos proceder, Senhor?

- Execute-os. Depois procurem a casa deles e a incendeiem. Isso deve atrasar os rebeldes por mais alguns dias. Irão entender o recado.

- Mas, Senhor...

- Gostaria de acrescentar algo soldado?

- Senhor, não, Senhor!

- Ótimo.

- E quanto à criança?

- Notou alguma exceção à minha ordem, soldado?

- Senhor, não, Senhor!

- Pois bem. Faça o que lhe foi ordenado.

- Peço permissão para me retirar.

- Permissão concedida.

O jovem guarda se retirou da sala desorientado. Teve que se apoiar na parede fria do quartel improvisado para não cair. Vomitou ali mesmo, acrescentando o cheiro de seus ácidos estomacais ao cheiro de carniça que invadia os corredores.

O homem de fardas dentro da sala abriu a janela e olhou para o tempo horrível do lado de fora. Os céus pareciam castigar aquela parte do mundo esquecida pela humanidade. Sentia nojo do lugar e de todos seus nativos. Um horror fugaz, mantido apenas pelo desejo da fama militar e das diversões mórbidas do circo de sangue. O mesmo homem que a pouco amargurava as crueldades do vilão, ignorava suas própria, sentenciando inocentes a um fim indigno, rasgando-lhes a última página da vida. Parecia jamais ter lido aquele livro. A arte imitava a vida, mas a vida era incapaz de imitar a arte.

Ouviu a gritos altos nos andares de baixo do quartel. A ordem fora dada. Berros de pavor de um homem, uma mulher e uma criança. Odiava aqueles rugidos selvagens e histéricos. Considerava-os animais doentes que espalham doenças, animais que precisavam ser abatidos. Ouviu o primeiro tiro. Mais gritos, desta vez apenas da mulher e da criança. Outro tiro. Apenas os gritos puros da infância. O último tiro. Apenas o silêncio. Para ele, o alívio.

Foi então que a janela foi violentamente escancarada pelo vento. A chuva mergulhou ávida na pequena sala, encharcando em segundos todo o lugar. Quando foi capaz de entender o que acontecia, a água já lhe atingia as canelas. Teve que fechar os olhos para caminhar em direção à janela, pois as gotas batiam pesadas em sua fronte, machucando e cortando sua pele como milhares de lâminas afiadas. Sua roupa era estilhaçada pelas gotas mortais. Quando chegou à janela estava praticamente nu, sem farda, nem medalhas. Sentiu, então, seus pés descolarem do chão, como se a gravidade tivesse passado a o ignorar.

Fora imprudente ao aproximar-se tanto da janela, pois agora a força do furacão o erguia com extrema leveza. As gotas lavavam seu corpo nu, mas concedia-lhe cortes ainda mais profundos que lhe deixavam expostos timidamente carne, entranhas e ossos, mas sem nenhuma gota de sangue sequer. O julgamento brutal não lhe permitia derramar o sangue que honra a morte de um homem no campo de batalha.

Seu corpo foi tragado pela janela junto com os móveis. Subia ao céu com uma velocidade exuberante, uma queda livre contra as leis naturais. Em sua subida, conjecturava que o furacão de sensações que sentira ao terminar o livro era o mesmo que agora o sentenciava, e que não lidava com as forças misteriosas da natureza, mas com a fraqueza da própria incompreensão. Quando atingiu alguns milhares de quilômetros de altura viu o livro girando bem à sua frente. Neste instante pode finalmente entender o que não havia entendido.

Em sua prepotência arrogante, imaginava ter compreendido o livro, e, em através dele, o mundo. Mas não fora capaz de perceber que essa compreensão se baseava apenas na conclusão que desfaz os nós da trama, que resolve os mistérios e a ansiedade do leitor irresoluto, que o livro não irradiava as idéias do autor, mas refletia suas próprias idéias, que não é o leitor que desvenda o que lê, mas o livro que desvenda quem o lê. Esquecera-se que aquele que não é capaz de compreender o homem que é, não possui o privilégio de compreender o homem que não é, e, portanto, é incapaz de compreender o mundo. Entendeu, enfim, a sua ligação com o livro. Antes do último momento esticou o braço, agarrou o livro e o trouxe junto ao peito.

Uniram-se docemente, como se une o açúcar à boca da criança amargurada, tão efêmero quanto o último suspiro de uma vida, tão imortal quanto o primeiro.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 22/01/2011
Reeditado em 25/07/2011
Código do texto: T2746093
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