Dona Gertrudes e o último Natal
Dona Gertrudes era uma destas velhinhas de interior que a gente olha e pensa que vai ficar pra semente. Do alto de seus noventa e dois anos de idade, contemplava a vida com aquela calma tão peculiar aos idosos e a morosidade que o desgaste dos músculos e dos órgãos fatalmente trás, entretanto, sem nenhum problema de saúde. A única coisa que a entristecia muito era a surdez, que já há cinco anos vinha aumentando gradativamente, até que passou a escutar quase nada, e depois, nada mesmo.
Morava num ranchinho simpático, com Sebastiana, sua nora e única parenta viva, pois o último filho morreu num trágico acidente, sete meses após o casamento e sem deixar-lhe netos, e Sebastiana, beata fervorosa, achou por bem não se casar de novo. Dizia que casamento é um só, e que amor não se repete. Assim, sogra e nora juntaram suas solidões de viúvas e faziam companhia uma à outra. Sebastiana vivia a insistir com a sogra para que procurasse o Dr. Percival, único médico de Sant’ana dos Aflitos.
_ Ô Dona Trude, mas a senhora bem que podia dar um pulinho lá no consultório do Dr. Percival. Vai ver sua surdez tem remédio. A medicina já tá muito adiantada. Hoje quase tudo já se conserta.
Dona Trude, com as mãos em concha ao redor do ouvido, a olhava com ar de indagação:
_Hein? Falô cumigo, mia fia?
Sebastiana aumentou o tom, quase gritando:
_Falei Dona Trude. Eu disse que a senhora devia procurar o Dr. Percival. Vai ver tem recurso prá sua surdez.
_Ah! Qui nada! Vô caçá médico prá módi de quê, mia fia? Já tô cum um pezinho no caxão. Nem paga mais a pena.
_Que nada Dona Trude. A senhora não tem nenhum problema sério de saúde. Ainda vai viver muitos anos, com a graça de Deus.
Dona Gertrudes repete as últimas palavras de Sebastiana, fazendo o sinal da cruz:
_Cum a graça de Deus! Mas, mia fia, de quê qui adianta? Veiêra num tem cura, não.
Sebastina a olha com ternura.
_Ah! Dona Trude. Eu sei que a senhora não vai ficar mais nova se for ao médico, mas pode ser que volte a escutar. Não seria maravilhoso poder ouvir de novo. Pensa bem, Dona Trude. Aposto que a senhora nem sabe mais qual é o sermão que o padre tá palestrando na hora da missa.
_É verdade, mia fia. Num sei mês não. Mais e daí? Rezo ingual todo mundo, e peço a Deus cum o memo frevô di sempre. A essa artura da mia vida, já num perciso sabê quê qui o padre tá falano. Mas uma coisa eu falo pr’ocê, Bastiana: Tenho tanta sodade do canto dos passarim. Ah! Disso eu tenho sodade sim. E das cantata de Natal tamém. É tão bunito...
_Então, Dona Trude, quem sabe a senhora buscando na medicina...
Tanto Sebastiana insistiu com a sogra que ela acabou por ceder. Marcaram uma consulta com Dr. Percival para a sexta-feira, antevéspera de Natal, às nove horas da manhã. As cinco, Dona Gertrudes já estava de pé, como de costume, acendendo o fogão pra ferver a água do sagrado cafezinho de todos os dias. Quando Sebastiana se levantou, Dona Gertrudes já estava pronta: Já tinha atrelado Faceira, a égua que possuía há quase quinze anos, à velha charrete vermelha. O vestido de florezinhas miúdas muito bem passado, o lenço de ramagem azul arranjadinho na cabeça, e calçada com os velhos, porém muito bem conservados sapatinhos de verniz, último presente do filho. Estava sentada no banco da porta, olhando os bem-te-vis que pupulavam no abacateiro, e Sebastiana, por um segundo, teve a impressão que seus olhos se moviam ao som do canto das aves.
Tomaram caminho para a vila. As oito e meia estavam em frente ao consultório, e Dona Gertrudes ainda hesitou uma vez mais antes de entrar. Voltou-se para a nora e disse, num suspiro quase que imperceptível:
_Ô Bastiana, será mês que eu devo fazê essa tar de consurta?
Sebastiana, habituada à surdez da sogra, falava no tom mais alto que podia:
_Mas por que não, Dona Trude? Agora que a gente já tá aqui. A consulta já tá paga, e o que a senhora tem a perder?
_Sei lá, mia fia. Se eu tô surda deve di sê da vontade de Deus. Dá inté medo buli cum essas coisa.
_Mas e a cantata, Dona Trude? O natal já é amanhã. Quem sabe a senhora já não sai daqui escutando? E o canto dos pássaros, que a senhora tem tanta saudade?
_Ah! Mia fia! Mas eu já sei de có e sartiado o quê qui aquele povo canta no Natar. É as mesma música todo ano. E os passarim, nem perciso ouvi cum os orvido. Quando vejo eles, iscuito o canto deles cum o coração.
_Mas escutar com os ouvidos é bem melhor, né Dona Trude?
_Tá bão, mia fia. Já que ocê qué, eu vô. Mas é só pra fazê seu gosto, qui eu num gosto di buli cum essas coisa não.
Finalmente, adentraram o consultório, e Gerusa, a simpática e sardenta secretária do Dr. Percival, as recebeu com o mesmo sorriso amarelecido (pelo hábito do fumo) que dispensava a todos os parcos clientes do jovem médico.
_Bom dia Dona Trude! Bom dia Bastiana!
E voltando-se para Dona Gertrudes:
_O Doutor vai atender a senhora já, já, viu? É só um minutinho.
Em dois minutos o médico apareceu à porta.
_Bom dia Dona Gertrudes! Bom dia Dona Sebastiana! E então, vamos entrar?
Dona Gertrudes olhou para Sebastiana ainda com um tantinho de hesitação no olhar. Sebastiana balançou a cabeça e tomou-a pela mão.
_Vamos Dona Trude. Tá na hora.
O médico começou a consulta pelo procedimento habitual, perguntando o que ela sentia, se tinha cansaço nas pernas ou dores nas costas, se ainda rachava a lenha ou fazia algum serviço na roça, e etc... As perguntas de rotina de um médico do interior, e a cada pergunta, Dona Gertrudes botava a mão em concha em torno do ouvido e repetia:
_Hein?
Sebastiana interrompeu:
_Desculpa intrometer Doutor, mas não carece de perder tempo com tanta pergunta não. Dona Trude tem uma saúde de ferro. Periga ter mais energia que nós dois juntos. O problema é só que ela não escuta nada. Já perdeu a audição quase que todinha.
O médico assentiu. Passou a examinar os ouvidos de Dona Gertrudes, e por fim, disse em tom otimista:
_Mas eu creio que a senhora não tem surdez alguma. O que acontece é que tem muita cera no ouvido. A senhora quer que eu limpe o ouvido da senhora? É um procedimento muito rápido e indolor. Vamos fazer agora?
E dona Gertrudes repetia:
_Hein?
Sebastiana acabou com o impasse:
_Pode sim Doutor, afinal viemos aqui pra achar uma solução, num é mesmo?
O médico deitou Dona Gertrudes na cama do consultório e aplicou-lhe nos ouvidos um remédio, quentinho, que lhe derreteu aos poucos a cera acumulada durante anos na entrada do pavilhão auricular. Em meia hora, Dona Gertrudes já podia escutar perfeitamente. Ficou feliz como há muito não se via. Abraçou o médico, agradecida. Prometeu que lhe traria meia banda de leitoa à pururuca na noite de Natal.
O médico agradeceu:
-Obrigado, Dona Gertrudes, mas não precisa se dar ao trabalho.
_Ara, Dotô! Mas eu faço questã! O Dotô me adevorveu a aligria de iscuitá.
_Mas prá que se dar ao trabalho de assar uma leitoa, Dona Gertrudes?
_Mais que hómi temoso, sô! Num é trabaio ninhum. Já to ingordano essa leitoinha deusde o mêis de maio, pensano justamente no Natar. Metade eu levo pra igreja, prá nóis ceiá cum o padre adispois da cantata, e a ôtra metade eu trago pru sinhô! E eu já disse que faço questã!
O médico cedeu:
_Tá bom Dona Gertrudes, se a senhora faz questão, então eu aceito de bom grado.
Dona Gertrudes voltou para casa maravilhada. Podia ouvir os sons da vila, o chiado das rodas das carroças, o burburinho das pessoas, que acorriam aos bazares para as compras de Natal, e até o trepidar da charrete na esburacada estrada de terra a comovia.
Passou todo o dia da véspera de Natal, entre o forno de barro, onde assava a leitoa da ceia, e o pomar, onde se sentava durante horas para escutar os bem-te-vis e os sabiás, a lançar no céu suas canções melodiosas.
Nunca a cantata foi tão bonita. As crianças vestidas de anjinho, com aquelas asinhas tão alvinhas (ela mesmo tinha feito uma prá filha da Dona Cleide, com peninhas do bumbum da galinha branca), e aquelas auréolas douradas no alto da cabeça, lindas, cantando aquelas músicas tão maravilhosas de Natal. Cantou feliz, junto com o coral de anjinhos. A ceia estava deliciosa, com vinho, frango assado, pudins, e toda sorte de delícias que as beatas da vila traziam todo ano para a ceia da casa paroquial, mas nada se comparava ao sabor de sua meia banda de leitoa à pururuca, que ela fez com o costumeiro capricho, mas desta vez, temperada com uma alegria a mais.
Depois da ceia, quando se preparavam para subir à charrete e voltar para casa, repentinamente ela quis voltar à igreja. Sebastiana, cansada das festanças, queria ir logo pra casa, mas Dona Gertrudes insistiu:
_É só um minutim, Bastiana. Perciso de í no presépo. Isquici de gradecê ao Minino Jesuis, por causa qui eu to iscuitano di novo.
Sebastiana concordou e pediu que ela não demorasse.
Dona Gertrudes entrou na igreja, ajoelhou-se diante do presépio, beijou a imagem do Deus Menino, rezou um Pai-Nosso e uma Ave Maria, e quando terminou a Salve Rainha, benzeu-se com o sinal da cruz, e tombou devagarinho, leve como as asas dos anjinhos do coral. Deu seu último suspiro, e dali mesmo, subiu para o céu, levada por uma legião de anjinhos de verdade. Descobriu, maravilhada, que as asas dos anjinhos de verdade, tinham penas longas e brilhantes, e que com certeza, não eram feitas de penas de bumbum de galinha branca, e mais maravilhada ficou, quando os anjos tomaram de suas harpas, e ela percebeu que eles, os anjinhos celestes, imitavam em suas melodias o canto dos bem-te-vis e dos sabiás...
Sebastiana continuou morando no rancho, sozinha, sempre saudosa da sogra e amiga, que partiu desse mundo assim, como um passarinho. Às vezes, quando ia ao pomar colher alguma fruta, ou quando se sentava à sombra do velho abacateiro, ouvia a melodia dos pássaros, lembrava-se da amiga, e não sabia entender o porquê, mas tinha uma sensação lá no fundo do peito, como se seu coração lhe dissesse, que nos últimos dias de vida da sogra, fora um instrumento de Deus.
E estava certa. É que Deus, já chamava há muito tempo a singela e boa Dona Trude, mas a cera no ouvido, a impedia de escutá-Lo...
Feliz Natal a todos! Nunca deixem de escutar o canto dos pássaros. Nunca deixem de se emocionar com uma cantata de Natal...