REFLEXÕES IMORAIS (PULP)
Nas ruas sujas de uma cidade qualquer, um tipo mal encarado, e não melhor vestido, anda sem rumo certo. Em seus pensamentos, grosseiros como o formato de seu queixo, um diário impossível de ser registrado.
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Não faço mesmo o tipo durão.
Apesar dessa minha aparência áspera, não faço. Mas é claro que isso também depende do seu ponto de vista. Adaptei para mim aquela expressão estúpida “nunca fiz mal a uma mosca sequer.” Estúpida porque nenhum de nós se livrou desse crime, em um ato reflexo estúpido qualquer. Somos todos homicidas sedentos, assassinos mordazes de mosquitos famintos desempregados e formigas trabalhadoras sem aposentadoria, mesmo que sem querer, mesmo que em nossa inocente infância. Então corte essa de pureza. O fato é: somos todos uns grandes filhos-da-puta. E não adianta fazer cara de inocente (ou endiabrado, seja lá o que for), os pecados mais sutis não possuem uma condenação, e portanto são também os piores. E sabe o que eu acho disso? Uma grande merda.
Costumo dizer: “nunca fiz mal a uma aranha sequer; a não ser que ela me morda.” Bom, nesse caso...
Tudo bem, confesso não ser sempre passivo em minhas ações, mas e daí? Os homens que são o tempo todo ativos ou passivos são grandes imbecis. Pra esses eu nunca precisei de desculpas para deixar a minha passividade de lado. E pra quem acha a minha paráfrase um lixo, vá pro inferno. Sou um andarilho, não um poeta.
Não posso contar da minha vida. Nem a minha juventude, nem a minha família, nem os amores que tive, nem as casas em que morei, nem as surras que levei. Não por mal grado, mas porque não me lembro. Confundi tanto minha realidade com minhas histórias em busca de trocados e vantagens banais que já não sei como vim parar aqui. Talvez minha única lembrança real seja um tio meu muito comprido, cabelos esparsos e um hálito horrível. Vivia com aquelas figurinhas de garotas peladas caindo pelos bolsos. Mas como prefiro muito mais outro tio que inventei, um boa-vida gordão que cospe dinheiro, finjo que o tio tarado é a invenção.
Ainda me lembro da ocasião em que precisei inventar o tio gordão. Eu estava em um desses pubs escuros, onde os cigarros são as únicas fontes de luz e é difícil até mesmo enxergar o próprio pênis pra poder mijar. Tentava convencer uma garota bêbada a me levar pra sua casa. Não por sexo. Queria apenas um lugar bacana e cheiroso pra dormir, quem sabe até ver um pouco de tv a cabo. Me livrar por uma noite da nauseabunda hospedagem em que estava dormindo nos últimos dias, que tinha mais insetos grotescos que hóspedes, já me bastava. Não que os insetos me dessem mais nojo que as pessoas. Não mesmo.
É claro, não sou um frouxo, nem tenho muitas frescuras para mulheres. Mas particularmente naquela ocasião eu não sentia tesão algum. O que não é difícil de entender-se quando se fica sabendo que só depois de quarenta minutos, falando sobre putarias e cretinices, é que descobri que aquele cara gente boa era, na verdade, uma garota desajustada de traços grosseiros. A luz não ajudava, tudo bem. Mas a voz dela também não. Longe de ser angelical. Ela não era um padrão de beleza, nem mesmo para os insetos deformados do meu alojamento. Mas insetos não tem tv a cabo.
Lembro-me que em algum momento ela comentou sobre aquelas figurinhas de mulher pelada, e então eu entrei com a história do meu tio asqueroso, que andava com figurinhas de garotas peladas caindo pelos... mas... mas... mas que caralho? Se esse é o tio que inventei, então o outro... talvez eu deva pesquisar sobre esse tio rico, então, quem sabe buscar umas novas fontes de renda. Mas eu duvido que eu já não tivesse feito isso se ele existisse. Merda! Não me lembro de nada, afinal.
Ando por essa rua escura e penso longamente sobre nada. Absolutamente nada se passa pela minha cabeça, a não ser essa linha de pensamento raquítica e crua, como a linha de um diário qualquer. Meu cérebro já tem de processar os cheiros repulsivos de fumaça e esgoto da cidade e seus sons sem graça e repetitivos, como um martelo reciclado de comida vencida batendo nos meus tímpanos cansados. Meus neurônios já tem coisas demais com as quais se preocupar. Talvez seja por isso que eu não consiga entrar em contato com eles de vez em quando.
Passo ao lado de um mendigo, que me diz: “Ma dá uma moeda pra eu comprar marmita...” Responso rispidamente: “Vá à merda!”, e sigo meu caminho.
Não é que eu não goste das pessoas, não me levem a mal. Mas elas me causam náuseas. Não que eu concorde com anarquismo, liberalismo, socialismo, machismo, vegetarianismo (por deus não, adoro um bom pedaço de picanha mal passado ao alho), ou qualquer dessas espécies de fanatismos que as pessoas não se cansam de tatuar em seus caráteres. Pra isso tudo estou pouco me lixando, pois a morte me belisca a bunda todos os dias e eu mal consigo arranjar um bom prato quente de comida no almoço. Só peço que entravem suas batalhas de preceitos e preconceitos longe de mim. Querem mudar o mundo, então vão em frente, mãos a obra. Mas duvido que isso vá encher minha barriga. E, caralho, eu estou morrendo de fome!
O único mundo que eu queria mudar agora é o meu. E nem me venha com esse papo de egoísmo. Se cada um desses vagabundos que eu conheço pelo menos tentasse mudar o seu próprio mundo miserável, aí já seria um começo, e talvez algum dia estivesse tudo bem. O problema mesmo é o conformismo. Tudo bem, sou um fodido completo, mas se preciso de algo vou lá e consigo. Ou pelo menos tento. E tentando vou descobrindo os limites de meus desejos. Não fico querendo um passeio de limusine em Las Vegas quando mal consigo um hot-dog completo na praça.
Cada um por si. Isso é egoísmo. Um querendo arrancar o que o outro nem tem, pra poder sempre ter o mais bonito, o mais legal, o mais, o mais... Lambedores de bosta! Nossos traseiros vão ser todos ser comidos pelos mesmos vermes no fim das contas, e posso garantir: seus vermes não serão mais vermes que os meus. Touché! Estaremos mais quites do que essas suas lindas bundinhas brancas cheirosas jamais poderiam imaginar. Será a minha vingança derradeira.
Não tenho nenhuma filosofia, essa é a verdade. Talvez eu possa dizer que tenho uma filosofia, que é não ter nenhuma filosofia, mas aí já iam encher o meu saco, pois eu estaria quebrando as leis do raciocínio lógico, da matemática e da puta que o pariu, e o mundo ia se dividir em dois entrar no apocalipse e a culpa seria toda minha. E aí eu iria ter que ouvir mais pessoas ainda me culpando e me dizendo o que fazer com as minhas palavras. Não, muito obrigado, eu passo.
Até gosto das pessoas. Não de todas, e nem sempre, mas tenho minhas exceções. Tudo bem que algumas pessoas sejam conformadas, mas não quer dizer que sejam culpadas. Dessas pessoas eu tenho alguma pena. Queria poder juntar todas elas em um apartamento apertado, comprar umas cervejas geladas, colocar um rock ‘n’ roll de verdade, e apenas curtir a noite. No dia seguinte levantaríamos todos de ressaca, sem lembrar porque todos estão enrolados em papel higiênico, e, com despedidas rápidas, cada um seguiria normalmente sua própria vida. Tudo bem, não resolvi os problemas do mundo. Mas e daí? Mas foi uma danada de uma noite do caralho! E não é assim que as coisas devem funcionar? Não quero erradicar os problemas das pessoas, só criar mais alguns bons momentos de diversão.
Coloco a mão no bolso e sinto três papéis. Puxo-os do bolso na esperança de encontrar boas causas para qualquer conseqüência. O primeiro é apenas um papel de bala. Merda! Sinto a fome de novo. A segunda e a terceira são notas de dinheiro. E uma delas vale dez vezes a outra. Genial! Paro e penso o que fazer com a grana.
Penso.
Pensei...
Mas que grande merda!
Dou meia volta por onde vim e sigo a passos curtos, tentando evitar a decisão, ou pelo menos reconsiderá-la. Para piorar ainda mais, piso numa poça gelada. Todos esses pequenos dedos do pé encharcados se encolhem dizendo: “Está vendo, é um sinal. Faça como nós: recue! Recue! Recue! ...”
Malditos dedinhos irritantes. Desafinados e descompassados o suficiente pra não me convencer.
Não paro.
Prossigo.
Paro.
Olho para as notas em minhas mãos que aguardam pela escolha de Sofia. Sofia? Sofia uma ova! Não é óbvio? Pelo menos deveria ser...
Puxo a nota de maior valor, e estico ao mendigo que xingei há pouco.
Ele estica a mão desconfiado. Chega perto e fecha os dedos para pegar a nota.
Eu puxo, e ele não consegue pegar.
Olha para mim e eu estou sorrindo com um olhar conciliador, já colocando a nota novamente a seu alcance. Ele a pega e sorri junto comigo.
Damos uma risada juntos, no mesmo tom. Risada de verdade.
Dou meia volta e vou embora.
Saio andando com minha nota magra novamente pelas ruas imundas procurando algum lugar barato para matar minha fome.
Afinal, não faço mesmo o tipo durão.