AMOR IRREFLETIDO

A toalha branca envolveu suas generosas curvas com avidez de amante apaixonado, ocupando cada espaço entre o desejo do abraço e o pecado da carne. A mulher sentiu o choque cortante do vento frio em sua pele, e adiantou-se para perto da janela fechando-a, impedindo que o ar gelado entrasse, e que o vapor de água quente abandonasse o banheiro.

Ao se virar deparou-se com o espelho redondo que mantinha sua imagem firme sob a moldura, desde o tórax até um pouco acima de sua cabeça. Parou por um instante com uma inata curiosidade feminina, observando-se. Ainda podia ver-se com clareza, já que o vapor ainda não começara a conquistar os seus domínios, sobrepujando as faces frias com seu calor atrevido.

Ainda se olhando, perguntou-se mentalmente, como se não fosse dela o pensamento. “O que procuro afinal?”. Ela também não o sabia. Procurava algo além de sua própria imagem. Algum segredo enigmático que passara despercebido pelos olhares de toda a humanidade até então, a concepção original completa de imagem, a redefinição de toda idéia de amor, pecado e alma, perdida talvez por um piscar de olhos, por uma cor mal definida ou uma trapaça infantil de nosso cérebro. Uma ilusão de ótica barata, se acomodando entre a realidade de fato e seu desenho sináptico. “Sou apenas isso? Só o que vejo?”.

Enquanto a neblina ígnea ia tornando menos nítida sua imagem no espelho, deu uma risada mansa e comprida, virando o rosto à procura de seus chinelos. “Não há mais nada! Como sou boba!”, e encaixou seus pés de cinderela no calçado de borracha. Virou-se abandonando o banheiro enquanto o espelho a observava longamente. Mantinha-se imóvel apenas por não ter outra opção.

“Como é boba, sim, como é boba! Por não perceberes das verdades a mais irrefutável, o amor. Ah desgraça das mais desgraçadas, meu idílio sem esperança. Como me dói e como me cansa. Ah, se tivesse um coração, eu de certo morreria. De tanta dor, ah, meu peito inexistente, de tanta agonia. Que imensa chaga é para mim essa noção limitada, que primitivo é este ser. Não conseguem enxergam nada além do que querem ver. E todo dia a mesma história se repete. Será que ela não percebe que não sou eu quem a reflito, mas é ela quem me reflete?”

Um som calou seu pensamento. Era ela voltando ao banheiro. No exato momento em que avançou porta adentro o espelho teria ficado pálido se possuísse sangue nos vasos sanguíneos que não possuía. “Terá ela me ouvido? Terá ela, finalmente, compreendido?”. Pensou absorto.

“Como sou distraída. Por isso a conta de luz sempre vem tão cara! Nunca me lembro nunca de apagar nada.”, e apagou a luz do banheiro, encostando a porta ao sair.

Deixou para trás apenas a escuridão absoluta. Nem pensamentos românticos, nem reflexões utópicas, pois o espelho, sem a luz, nada podia refletir. O espelho deixou de ser objeto. Era ele o tempo infinito e o momento instantâneo, a certeza inegável e a probabilidade incorrigível, o ponto invisível e o universo supremo. Apenas uma massa física ocupando seu espaço cadavérico em um mundo sem objetivos ou significados. Um espelho sem luz. “Como um peito sem amor”, é o que teria pensado o espelho se o pudesse fazer.

E então todas aquelas pequenas gotículas acumuladas em sua úmida cútis vítrea começaram a se agrupar lentamente. A primeira gota formou-se sobre o espelho, e a lágrima escorreu pesada sobre a superfície, aumentando de volume enquanto varria sua face nua.

E depois vieram as outras.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 06/10/2010
Reeditado em 30/10/2023
Código do texto: T2540672
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