O DENOMINADOR COMUM DAS COISAS
Em uma conversa distinta e improvável conversavam quatro homens indistintos e prováveis.
Sobre a mesa de madeira, quatro cálices.
Como os quatro vestiam batas amarelas, tinham barbas cheias e narizes aduncos, a única maneira fácil de diferenciá-los era pelo conteúdo de seus copos, visto que as diferenças morais, as memórias e os pecados não são visíveis a olhos nus.
Os copos continham, em ordem indiferente, vinho, cerveja, água e ar.
Arguiram sobre o governo, a sociedade, a vaidade, a verossimilhança, a coincidência e a demência.
Cada assunto que era deixado para trás legava aos homens, como herança, sua cauda de divergência, que distanciava cada vez mais os pensadores uns dos outros, apesar de suas cabeças estarem cada vez mais próximas, e suas vozes cada vez mais vibrantes.
Não eram movidos pela a fúria selvagem dos homens, mas pela fúria sutil das idéias.
Não apenas a cerveja e o vinho embriagavam. Mesmo a água e o ar tornavam os pensamentos mais turvos. Lembrou, um deles:
“O ar é uma droga ainda mais perigosa que todas as outras por nós conhecidas. Assim que o corpo experimenta sua essência pela primeira vez, quando abandona o líquido primordial materno, o corpo já se contorce febrilmente, pois acabou de se tornar mais uma vítima do vício dessa substância tão venenosa e tão poderosa. Se torna tão completamente dependente que basta apenas alguns minutos sem uma única dose para que o corpo feneça, e reste apenas a carcaça inerte. Há os que digam que nesses casos nem mesmo a alma se salva. Sem dúvidas, a pior das drogas.”
Quanto mais a embriaguez tomava conta da mesa, assuntos mais raros às línguas comuns eram discutidos. Os tipos de assuntos que não costumam nadar em salivas perversas.
Passaram a discutir sobre as origens do nojo, a intensidade do gozo, a insanidade animal e razão universal. E depois uniram todos em um só debate.
Na tentativa de criar a quimera dos pensamentos, os homens se sentiram satisfeitos, e chamaram a essa deformada pangéia de ideias de “Coisas”.
Em suas concepções, que pela primeira vez convergiam, mesmo que fosse apenas por um instante infinitesimal, as Coisas incluíam não somente os assuntos, como religião, política, economia e antropologia; não apenas seus tópicos, como criação do universo, tipos de governo, meios de troca e origem da loucura. Incluíam, também, todas as suas opiniões e pontos de vistas, todas as suas divergências e concordâncias, pois fora sobre as colunas da indiferença que esse monumento tinha se erguido. As Coisas eram tudo, e donas de todas as verdades, pois não continham apenas uma, mas todas elas, e portanto completamente irrefutáveis.
Por isso todos concordaram com ela por aquele instante de medida impossível, quando o silêncio completo tomou conta da mesa. Mas esses pensadores estavam tão sintonizados pelas diferenças que logo descobriram, em um mesmo instante, o sofisma.
O temerário “Porém...”, que os quatro falaram em uníssono, ressoou no cálice cheio de ar, e fez todos silenciarem novamente com a surpresa de tamanha coincidência. Algumas risadas sem graça se distribuíram pela mesa, antes do mais embriagado dos homens, o que sorvia duplamente o ar, tomou as rédeas das idéias novamente.
Dizia que sim, as Coisas podem ser o Tudo e o Nada, mas mesmo assim se diferem por sua divisibilidade. “Não é só porque eu tenha gostado de um livro, que eu tenha necessariamente me entretido por todas as páginas. E ainda mais interessante. Posso ter lido um livro complicado, e não ter gostado de nem ao menos uma página do livro, mas mesmo assim, na soma de todas as partes, concluir que o livro é uma escrita sublime.”, disse. Alguém não concordou na mesa, outro não concordou nem discordou, e o último introduziu uma idéia nova para tentar dar cabo ao nó desta nova discussão. Não que quisesse fazer isso, mas porque se sentia no dever.
“A confusão está feita pois já estamos discutindo outro assunto. Não falamos mais sobre a credibilidade das Coisas, mas sobre sua intensidade. E ao que podemos exemplificar, como o fizemos até agora, digo que são como os vícios e as virtudes. Muitos acreditam que nossas qualidades e defeitos são como moedas, que são ou cara, ou coroa. - Esse aqui é de bom coração e aquele tal tem má índole. Este outro é sempre alegre, mas aquele acolá é melancólico e amargurado. - Em suas cabeças ou somos o sinônimo, ou o antônimo, mas nunca os dois ao mesmo tempo.”
“Entendo.”, enfatizou o que estava à sua frente, “Você diz que os homens não são necessariamente bons ou maus, mas algo dos dois ao mesmo tempo. O que de fato muda é apenas a intensidade de ser mau e bom, de estar mais triste do que alegre, mas nunca apenas algum dos dois. Devo confessar que é uma opinião e tanto. Será possível que existam pessoas boas e más na mesma intensidade?”
“Com certeza.”, respondeu o companheiro ao seu lado, “Diria que o dono deste bar é tão alegre quanto é triste. Talvez seja a quantidade de dinheiro que carrega.”
“Ou talvez o efeito que o tempo teve sobre sua mulher!”, finalizou outro, deixando todos entregues às risadas.
Quando o último som saiu da última garganta que ainda fazia barulho, todos se entreolharam. Pareciam ver nas almas uns dos outros que agora já era possível esclarecerem seus pontos de vista. Se outrora necessitavam de um denominador comum para dividir os seus pensamentos entre eles próprios, sem que sobrasse a ninguém o “resto” da dúvida, agora tinham-no. As Coisas e suas intensidade eram os seus denominadores comuns.
As discussões podem durar séculos incontáveis. Podem até mesmo não se findarem jamais. Era famosa no bar a história sobre uma discussão que se desenrolara durante décadas, entre a mesma roda de companheiros, e não chegou a uma conclusão nem mesmo com a morte do último, já que seus filhos tomaram a responsabilidade de prosseguir com o embate. Mas quando se possui um denominador comum, os debates impossíveis se tornam simples problemas de soma.
Todos puxaram o ar e abriram a boca para falar ao mesmo tempo. Desistiram, ao esperar gentilmente que um dos companheiros o pudesse fazer. Um deles, desconfortável com a frase que prendia na garganta, não esperou nem que os outros tomassem fôlego novamente.
"Acredito em todas as coisas, e nessas todas acredito completamente.", disse o homem que sorvia o ar.
"Acredito em poucas coisas, e nessas todas acredito completamente.", disse o homem que libava a água.
"Acredito em poucas coisas, e sobre todas essas ainda tenho muitas dúvidas.", disse o homem que tomava a cerveja.
"Acredito em todas as coisas, e sobre todas essas ainda tenho muitas dúvidas.", disse o homem que bebia vinho.
Eram esses homens um imaculado, um cético, um prudente, e um filósofo. Não necessariamente nesta mesma ordem, já que isso não tem a menor importância.
Sem nem mais uma palavra sequer, terminaram seus copos, despediram-se em silêncio, com um aceno de cabeças, e voltaram cada um para suas casas.
Todos eles satisfeitos com as diferenças do mundo.