O ELEITO
©Dalva Agne Lynch
Ele tivera uma boa vida. Não apenas boa no sentido de prazeres e alegrias, mas principalmente no sentido de boas ações. Olhando seu corpo envelhecido deitado na cama, sabia que havia feito tudo o que deveria ter feito para merecer entrar nos Céus.
Aos 23 anos, quando a juventude americana estava sendo sumariamente enviada à guerra do Vietnã, ele fugira para as montanhas canadenses, para não ser convocado. Não queria participar dos erros da sociedade. Queria viver em paz e amor.
Depois de dois anos de uma vida solitária, acompanhado apenas de seu cão, encontrou um grupo de jovens que haviam renunciado a tudo para servir o Cristo. Eles riam e cantavam e pregavam o evangelho. Ele empunhou sua guitarra e uniu-se a eles.
Percorreu o mundo cantando e pregando, até chegar ao Brasil, onde bem logo subiu à Liderança. Para sua surpresa, a Liderança não era um bando de jovens que haviam renunciado a tudo – era uma Elite Celestial, escolhida a dedo para governar o Mundo quando o Cristo voltasse. Nada lhes era negado – os milhares de seguidores arrecadavam os fundos necessários para que pudessem viver a vida de reis e rainhas que cabia aos Eleitos do Senhor.
A vida dele, contudo, parecia marcada por problemas. Depois de uma noite despreocupada, voltando para casa com alguns de seus seguidores, o seu carro atropelou um homem, que faleceu na hora. Com o escândalo que se seguiu, os Eleitos o demoveram. Ele agora era, mais uma vez, um mero seguidor. Para ser reinstituído entre os Eleitos, havia apenas uma condição: ele deveria se casar.
Durante suas andanças pelo sul do país, havia conhecido uma menina que se apaixonara por ele. Decidiu que ela seria uma boa escolha. Não importava que não a amasse. Amor é algo secundário na vida de um Escolhido. O Dever vinha em primeiro lugar.
Sua nova esposa, entretanto, demonstrou ser mais um problema. Cheia de idéias de amor e de honra mundanos, ela se chocou com a vida que a Liderança vivia, e recusou-se a viver de acordo com seus padrões. Depois de muitas decisões erradas, nas quais ela demitiu líderes promissores apenas porque, ao seu entender, eles não eram honestos, ambos foram categoricamente rebaixados. Em revolta, ele decidiu abandonar sua vida de missionário.
Durante alguns anos, acompanhado de sua renegada esposa, viajou pelo mundo, tentando ao máximo afastar-se das rebeldias dela. Quando chegaram os filhos, retornaram aos States e ele foi trabalhar em uma proeminente companhia internacional, logo subindo à chefia.
Por três anos ele aguentou, calado, o sufoco de trabalhar naquele Mundo que abandonara justamente por não concordar com suas regras, seus apertos e batalhas, e aquela esposa que era um constante lembrete de toda a liberdade que perdera. Por agora era um bem-sucedido homem de 35 anos, com boa situação financeira, mas sentia-se fracassado, e sonhava com seus dias servindo ao Senhor, sem preocupações com contas a pagar, escola dos filhos, consertos de canos e compras de supermercado.
Finalmente, não suportando mais, tomou a decisão que mudaria toda a sua vida. Decidiu voltar ao grupo. No início, sua esposa lhe deu todo o apoio. Quando, porém, ele entregou à Liderança todos os pertences do casal, bem como retirou as crianças da escola e as entregou aos cuidados do grupo, ela se rebelou. A Liderança se reuniu – sem a permissão da esposa, os bens do casal não poderiam ser transferidos. Ficou decidido que ela precisava ser descartada.
Depois de uma sessão de exorcismo, na qual a esposa provou não estar arrependida de seus pecados de rebeldia, ela foi dopada, colocada em um avião e enviada ao Brasil, aos cuidados dos comissários de bordo.
O problema estava resolvido. Depois dos trâmites legais, nos quais ele declarou que a esposa abandonara o lar e os filhos por outro homem, ele assinou todas as posses ao grupo, deu à Liderança a custódia dos filhos, e viajou para o Oriente. Finalmente estava livre para seguir o Senhor.
A esposa, agora sozinha e sem recursos, começou uma inútil batalha para reaver os filhos.Como era de se esperar, passou por toda espécie de problemas e provas, obviamente devido aos demônios que agora a cercavam, já que voltara as costas ao serviço do Senhor. Ela foi até mesmo à imprensa internacional e aos tribunais de cinco continentes, tentando destruir o grupo e reaver os filhos, mas o Senhor os protegeu, e a proscrita não conseguiu seus objetivos.
Por alguns anos, a vida sorriu para ele. Com a proteção de seu guia espiritual, o anjo Metatron, ele vivia completamente separado do Mundo e seus pecados de ganância, violência e guerras, e nem ao menos precisava se preocupar com os filhos, que moravam com mais outras cento e poucas crianças atrás dos altos muros de uma escola do grupo. Seu único problema era a chuva de ataques da ex-esposa na imprensa, mas a estes ele entregava nas mãos de Metatron.
Por muitos anos a vida se passou sem grandes mudanças. Contudo, quando os meninos atingiram a adolescência, eles começaram a mostrar os mesmos espíritos demoníacos da mãe, e nenhuma oração ou sacrifício parecia ajudar. Os meninos eram rebeldes contra as regras dos Líderes, argumentavam a respeito dos dogmas mais básicos, e, pior de tudo: declararam que queriam seguir a carreira militar.
Tudo isto poderia se refletir na imagem do pai. Depois de conversar com os demais Líderes sobre o que poderia ser feito, ficou decidido que os meninos seriam encarcerados em um Lar Correcional para adolescentes problemáticos. Quando, depois de meses, nem as surras e os castigos expulsaram os demônios da mente dos meninos, que se mostraram impossíveis de controlar, eles foram enviados de volta aos States, onde os avós e os tios moravam.
Foi então que o impensável aconteceu. Os meninos retornaram para a mãe. Pior ainda, ingressaram nas Forças Armadas e tornaram-se ativos contra o grupo, em sites e blogs da internet.
Quando as guerras do Oriente Médio chegaram, eles partiram para a luta, sendo até mesmo condecorados. Ele, o pai daqueles proscritos que haviam abandonado os Eleitos do Senhor para lutarem no maldito Mundo, ficou desesperado. Publicamente renegou os filhos e cortou todo contato. Não podia deixar que os demônios do Mundo chegassem a ele através de cartas ou telefonemas. Ele precisava se manter puro para não perder sua morada nos Céus. Agarrou-se como nunca a Metatron, rogando-lhe que se vingasse por ele sobre os filhos e a esposa.
Por dez anos, ele continuou em frente, mas agora nem mesmo a certeza de estar obedecendo e servindo ao Senhor podia calar aquela sensação de que algo estava errado. Os Líderes, certos de que os demônios da ex-esposa o estavam atacando, fizeram diversas reuniões de oração e exorcismo para livrá-lo, mas nada adiantou. A depressão crescia.
E agora ali estava ele, olhando seu corpo já envelhecido, finalmente livre da carcaça dos vivos e pronto para ingressar nos Jardins Sagrados. Em uma nuvem imaculada, sentiu-se elevado aos Céus.
Havia um portal dourado entreaberto à sua frente, e um homem com longas vestes brancas estava lendo um pergaminho. Ele se aproximou, mas o homem não levantou os olhos. Ele viu seu nome escrito no pergaminho, e sabia que ali estava toda a lista de suas boas obras, todas as renúncias que sofrera para servir ao Senhor, e sentiu-se em paz. Sua recompensa estava logo ali, do outro lado daquela porta.
Então o homem de longas vestes brancas levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
E de repente ele estava em um redemoinho de visões, vendo sua esposa sozinha percorrendo as ruas, sendo estuprada em seu quarto de hotel, chorando à noite pelos filhos, indo de cidade em cidade, de país em país, na mídia, nas igrejas, nas escolas, despojada de quaisquer outros desejos e anseios – somente ela e sua ânsia de reaver e proteger os filhos. Ano após anos, dia após dia. E sempre chamando por ele, e implorando-lhe, vez após vez:
“Amado, deixa-me voltar para casa!”
Ele viu também os filhos, sozinhos em meio a tantas crianças, sem brinquedos, com roupas e óculos de segunda mão, muitas vezes grandes demais. E ouviu o choro deles, à noite, encolhidos na cama, chamando baixinho pela mãe desaparecida.
E daí ele estava de volta à frente do homem de longas vestes brancas. Com os olhos profundamente tristes, sem nem mesmo mencionar toda a sua longa lista de renúncias e de boas obras, o homem dirigiu-se a ele e fez-lhe apenas uma pergunta:
“Amigo... ONDE ESTÁ SUA ESPOSA?”
E, dando-lhe um último olhar de tristeza, o homem voltou-se, dirigiu-se ao portal dourado e fechou-lhe as portas.
(continuação em O Eleito II
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©Dalva Agne Lynch
Ele tivera uma boa vida. Não apenas boa no sentido de prazeres e alegrias, mas principalmente no sentido de boas ações. Olhando seu corpo envelhecido deitado na cama, sabia que havia feito tudo o que deveria ter feito para merecer entrar nos Céus.
Aos 23 anos, quando a juventude americana estava sendo sumariamente enviada à guerra do Vietnã, ele fugira para as montanhas canadenses, para não ser convocado. Não queria participar dos erros da sociedade. Queria viver em paz e amor.
Depois de dois anos de uma vida solitária, acompanhado apenas de seu cão, encontrou um grupo de jovens que haviam renunciado a tudo para servir o Cristo. Eles riam e cantavam e pregavam o evangelho. Ele empunhou sua guitarra e uniu-se a eles.
Percorreu o mundo cantando e pregando, até chegar ao Brasil, onde bem logo subiu à Liderança. Para sua surpresa, a Liderança não era um bando de jovens que haviam renunciado a tudo – era uma Elite Celestial, escolhida a dedo para governar o Mundo quando o Cristo voltasse. Nada lhes era negado – os milhares de seguidores arrecadavam os fundos necessários para que pudessem viver a vida de reis e rainhas que cabia aos Eleitos do Senhor.
A vida dele, contudo, parecia marcada por problemas. Depois de uma noite despreocupada, voltando para casa com alguns de seus seguidores, o seu carro atropelou um homem, que faleceu na hora. Com o escândalo que se seguiu, os Eleitos o demoveram. Ele agora era, mais uma vez, um mero seguidor. Para ser reinstituído entre os Eleitos, havia apenas uma condição: ele deveria se casar.
Durante suas andanças pelo sul do país, havia conhecido uma menina que se apaixonara por ele. Decidiu que ela seria uma boa escolha. Não importava que não a amasse. Amor é algo secundário na vida de um Escolhido. O Dever vinha em primeiro lugar.
Sua nova esposa, entretanto, demonstrou ser mais um problema. Cheia de idéias de amor e de honra mundanos, ela se chocou com a vida que a Liderança vivia, e recusou-se a viver de acordo com seus padrões. Depois de muitas decisões erradas, nas quais ela demitiu líderes promissores apenas porque, ao seu entender, eles não eram honestos, ambos foram categoricamente rebaixados. Em revolta, ele decidiu abandonar sua vida de missionário.
Durante alguns anos, acompanhado de sua renegada esposa, viajou pelo mundo, tentando ao máximo afastar-se das rebeldias dela. Quando chegaram os filhos, retornaram aos States e ele foi trabalhar em uma proeminente companhia internacional, logo subindo à chefia.
Por três anos ele aguentou, calado, o sufoco de trabalhar naquele Mundo que abandonara justamente por não concordar com suas regras, seus apertos e batalhas, e aquela esposa que era um constante lembrete de toda a liberdade que perdera. Por agora era um bem-sucedido homem de 35 anos, com boa situação financeira, mas sentia-se fracassado, e sonhava com seus dias servindo ao Senhor, sem preocupações com contas a pagar, escola dos filhos, consertos de canos e compras de supermercado.
Finalmente, não suportando mais, tomou a decisão que mudaria toda a sua vida. Decidiu voltar ao grupo. No início, sua esposa lhe deu todo o apoio. Quando, porém, ele entregou à Liderança todos os pertences do casal, bem como retirou as crianças da escola e as entregou aos cuidados do grupo, ela se rebelou. A Liderança se reuniu – sem a permissão da esposa, os bens do casal não poderiam ser transferidos. Ficou decidido que ela precisava ser descartada.
Depois de uma sessão de exorcismo, na qual a esposa provou não estar arrependida de seus pecados de rebeldia, ela foi dopada, colocada em um avião e enviada ao Brasil, aos cuidados dos comissários de bordo.
O problema estava resolvido. Depois dos trâmites legais, nos quais ele declarou que a esposa abandonara o lar e os filhos por outro homem, ele assinou todas as posses ao grupo, deu à Liderança a custódia dos filhos, e viajou para o Oriente. Finalmente estava livre para seguir o Senhor.
A esposa, agora sozinha e sem recursos, começou uma inútil batalha para reaver os filhos.Como era de se esperar, passou por toda espécie de problemas e provas, obviamente devido aos demônios que agora a cercavam, já que voltara as costas ao serviço do Senhor. Ela foi até mesmo à imprensa internacional e aos tribunais de cinco continentes, tentando destruir o grupo e reaver os filhos, mas o Senhor os protegeu, e a proscrita não conseguiu seus objetivos.
Por alguns anos, a vida sorriu para ele. Com a proteção de seu guia espiritual, o anjo Metatron, ele vivia completamente separado do Mundo e seus pecados de ganância, violência e guerras, e nem ao menos precisava se preocupar com os filhos, que moravam com mais outras cento e poucas crianças atrás dos altos muros de uma escola do grupo. Seu único problema era a chuva de ataques da ex-esposa na imprensa, mas a estes ele entregava nas mãos de Metatron.
Por muitos anos a vida se passou sem grandes mudanças. Contudo, quando os meninos atingiram a adolescência, eles começaram a mostrar os mesmos espíritos demoníacos da mãe, e nenhuma oração ou sacrifício parecia ajudar. Os meninos eram rebeldes contra as regras dos Líderes, argumentavam a respeito dos dogmas mais básicos, e, pior de tudo: declararam que queriam seguir a carreira militar.
Tudo isto poderia se refletir na imagem do pai. Depois de conversar com os demais Líderes sobre o que poderia ser feito, ficou decidido que os meninos seriam encarcerados em um Lar Correcional para adolescentes problemáticos. Quando, depois de meses, nem as surras e os castigos expulsaram os demônios da mente dos meninos, que se mostraram impossíveis de controlar, eles foram enviados de volta aos States, onde os avós e os tios moravam.
Foi então que o impensável aconteceu. Os meninos retornaram para a mãe. Pior ainda, ingressaram nas Forças Armadas e tornaram-se ativos contra o grupo, em sites e blogs da internet.
Quando as guerras do Oriente Médio chegaram, eles partiram para a luta, sendo até mesmo condecorados. Ele, o pai daqueles proscritos que haviam abandonado os Eleitos do Senhor para lutarem no maldito Mundo, ficou desesperado. Publicamente renegou os filhos e cortou todo contato. Não podia deixar que os demônios do Mundo chegassem a ele através de cartas ou telefonemas. Ele precisava se manter puro para não perder sua morada nos Céus. Agarrou-se como nunca a Metatron, rogando-lhe que se vingasse por ele sobre os filhos e a esposa.
Por dez anos, ele continuou em frente, mas agora nem mesmo a certeza de estar obedecendo e servindo ao Senhor podia calar aquela sensação de que algo estava errado. Os Líderes, certos de que os demônios da ex-esposa o estavam atacando, fizeram diversas reuniões de oração e exorcismo para livrá-lo, mas nada adiantou. A depressão crescia.
E agora ali estava ele, olhando seu corpo já envelhecido, finalmente livre da carcaça dos vivos e pronto para ingressar nos Jardins Sagrados. Em uma nuvem imaculada, sentiu-se elevado aos Céus.
Havia um portal dourado entreaberto à sua frente, e um homem com longas vestes brancas estava lendo um pergaminho. Ele se aproximou, mas o homem não levantou os olhos. Ele viu seu nome escrito no pergaminho, e sabia que ali estava toda a lista de suas boas obras, todas as renúncias que sofrera para servir ao Senhor, e sentiu-se em paz. Sua recompensa estava logo ali, do outro lado daquela porta.
Então o homem de longas vestes brancas levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
E de repente ele estava em um redemoinho de visões, vendo sua esposa sozinha percorrendo as ruas, sendo estuprada em seu quarto de hotel, chorando à noite pelos filhos, indo de cidade em cidade, de país em país, na mídia, nas igrejas, nas escolas, despojada de quaisquer outros desejos e anseios – somente ela e sua ânsia de reaver e proteger os filhos. Ano após anos, dia após dia. E sempre chamando por ele, e implorando-lhe, vez após vez:
“Amado, deixa-me voltar para casa!”
Ele viu também os filhos, sozinhos em meio a tantas crianças, sem brinquedos, com roupas e óculos de segunda mão, muitas vezes grandes demais. E ouviu o choro deles, à noite, encolhidos na cama, chamando baixinho pela mãe desaparecida.
E daí ele estava de volta à frente do homem de longas vestes brancas. Com os olhos profundamente tristes, sem nem mesmo mencionar toda a sua longa lista de renúncias e de boas obras, o homem dirigiu-se a ele e fez-lhe apenas uma pergunta:
“Amigo... ONDE ESTÁ SUA ESPOSA?”
E, dando-lhe um último olhar de tristeza, o homem voltou-se, dirigiu-se ao portal dourado e fechou-lhe as portas.
(continuação em O Eleito II
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