APENAS MAIS UM DIA DE PELADA

A pelada 'inda nem começara quando, durante o alongamento, aquele primo do Zé Pança, e também novo integrante do futebol de terças-feiras, explicou-se do motivo de sua tremenda elasticidade:

- Faço yoga todos os dias, por isso é que consigo me dobrar tanto. Confesso que no começo era só por causa da minha vizinha, a boazuda do 715, que dava as aulas no próprio apartamento. Ai, ai, ai, um tesão de mulher, rapaz – disse fazendo um bico com a boca e beijando a ponta dos dedos. – Poucos dias depois de começar descobri que ela gostava da mesma fruta que eu, da pra acreditar? Quase desisti das aulas. Mas comecei a reparar que aquela prática me trazia uma grande paz interna... e também que as dicas da sacana pra fazer uns aviões pousarem na minha precária pista de pouso eram cretinamente efetivas. Foram esses meus motivos para continuar. Mas principalmente a paz interna. Juro, cara! Eu era muito nervoso antes. Qualquer confusãozinha me tirava do sério. Agora é bem diferente. Hoje em dia eu sou da turminha do Deixa-disso. Pegou? Turminha do Deixa-disso?

Rivas tinha parado de prestar atenção no monólogo assim que ouviu a palavra 'boazuda'. Acariciou sua careca lustrada com sua mão esquerda e se lembrou da mulher do seu chefe da seguradora, que viera lhe trazer um bolo de fubá na última semana. Rivas quase nunca falhava em seus pressentimentos. Acreditava que a Dona Marta estava tentando pular a cerca, e que precisava de sua ajuda para isso. O empecilho para o pecado, porém, não era o chefe, mas as proporções descomunais e nem um pouco atraentes de sua mulher. Por isso quando ouviu 'boazuda' ficou naufragado em seus pensamentos, só imaginando o quão mais interessante seria se assim fosse Dona Marta. Quando ouviu a expressão “Turminha do Deixa-disso” apenas assentiu com a cabeça e devolveu um sorriso.

Olhou para um canto da quadra e viu um pequeno barril de cerveja de cinquenta litros ruivo esforçando-se para alongar. É assim que ele acreditava que Brossi, seu chefe e marido de dona Marta, assemelhava-se. Apesar de sua força de vontade desumana para alcançar seus pés com as mãos, seu corpo compacto o fazia parecer estático.

Rivas acreditava que existiam nomes específicos para superiores, e esse era um deles: Brossi. Imaginava que se, talvez, tivesse sido registrado como Brossi, já possuiria sua extensa mesa de mogno cheio de papéis importantes para assinar na sala individual do último andar da empresa. Ou quem sabe, assim que ele se tornasse um, receberia uma lista seleta entitulada "nomes de chefe", de onde poderia escolher a sua nova graça, para assim atualizar a sua antiga identidade de subordinado.

Começou a divisão de times. Romareco, par. Rivas, ímpar. "Dois!". E Romareco é que começa escolhendo. Na sua vez, Rivas escolheu primeiro o Primo do Zé Pança. Como ainda não sabia seu nome, tentou se lembrar das únicas duas palavras que lembrava tê-lo ouvido falar. Uma foi 'boazuda'. A outra foi 'deixa-disso'. Decidiu que chamá-lo de Deixa-disso, já que ficaria menos constrangedor. Em seguida escolheu o Lama e depois o Piteco. Curiosamente, o jogador que sobrou por último para o seu time para o seu time foi Brossi.

Antes de começar resolveram fazer uma aposta. O time que perdesse pagaria todas as cervejas do time vencedor no domingo, dia de clássico do Campeonato Brasileiro. Era um jogo de vida ou morte. A pelada, não o clássico.

Os times foram formados. Todos vestiram os coletes. "Valendo!". O jogo começou. A bola rolou pela primeira vez e aconchegou-se confortavelmente no pé do Romareco, o melhor jogador da turma. Sem pensar duas vezes chutou sem muita precisão, do meio do campo, no gol. E GOL!

Os jogadores do outro time se entreolharam surpresos antes de descobrirem que tinham esquecido de escolher um dos jogadores para ficar no gol. Rivas sorriu sem graça para Deixa-disso, que olhou desentendido para Lama, que encarou incrédulo Piteco, que se desviou precavido do olhar do Brossi, que fuzilou, sem dó, Rivas com os olhos vermelhos de raiva. Brossi, que jamais fora da turma do deixa-disso, berrou estridentemente, enquanto suas cordas vocais faziam um trabalho heróico para tornar suas palavras discerníveis:

- SEU CORNO FILHO DE UMA ÉGUA! PORQUE NÃO FOI PRO GOL? EU TE AVISEI!

- Avisou o quê? Não disse nem sequer uma palavra desde que chegou! E por acaso você acha que aqui eu tenho que ficar acatando ordem sua também???

- SEU GOIABA! VOCÊ NÃO PRESTA PRA MERDA NENHUMA MESMO! - e empurrou o Rivas contra as grades.

Aí começou uma confusão generalizada. Brossi empurrando Rivas, que empurrava Brossi de volta, e assim por diante. Alguns tentavam separar o empurra-empurra e, em meio ao bate-boca intenso, Deixa-disso comprovava sua teoria da paz interna enquanto gritava, fora de controle: "DEIXA DISSO! DEIXA DISSO!!! EMPURRÃO É COISA DE MARICAS! CHUTA ELE! CHUTA NO SACO! DEIXA DISSO!!! EMPURRÃO NÃO, PÔ..."

Sem nenhum tipo de aviso uma chuva torrencial começou. Algumas gotas pesadas no ombro. Romareco colocou a mão na cabeça e alertou com expressão de dor. "É granizo!". Correram todos para baixo de um alambrado na lateral do campo. Nos dez minutos que ali se seguiram misturaram-se uns poucos xingametos contra São Pedro, alguns palpites para o clássico de domingo e até mesmo um cochilo recheado de ronco.

Quando o céu deu uma trégua, os jogadores se recompuseram rapidamente em campo. Rivas rolou a bola para Lama, que atrasou para o, agora definido, goleiro Piteco. Este lançou para Deixa-disso na meia direta. Driblou um, dois e tocou com categoria para Brossi na entrada da área. O chefe viu bem o seu funcionário enfiado no meio de dois zagueiros e deu um toque certeiro. Rivas só precisou tirar o goleiro e empurrar para o fundo da rede. GOL! Na comemoração Rivas foi dar um abraço em Brossi para agradecer o presente. Este retribuiu com um amigável tapa na bunda. Tudo empatado! O placar e as desavenças. Bola ao centro. O jogo começou de novo. Deixa-disso tropeçou na bola e caiu como uma gelatina, quase em câmera lenta, de costas no chão. O jogo teve de ser interrompido por um motivo nobre. Um minuto de gargalhadas em respeito ao tombo.

Não era o Futebol Arte. Mas era o Santo Futebol de Toda Semana.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 31/03/2010
Reeditado em 01/08/2010
Código do texto: T2170136
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