Aingá

Prefácio da Obra completa,

(escrito por Nilson Moreno, também escritor do Recanto das Letras)

Ao navegante que ora se propõe o mergulho em Aiangá, que fique prevenido de seus ardis, para não se deixar perder. Ele está aqui como em nossas vidas, às vezes sutil como uma doença rara numa criança, como acidentes domésticos, na separação movida à desesperança. Outras vezes vira lenda, propõe a própria inexistência para melhor se esconder. E em algumas outras, ao contrário, regozija-se em se mostrar sem máscaras, em defender os seus, em deturpar a Ordem Universal e desafiar o Outro.

E para tanto Ele usa da dor, da morte, do sofrimento humano. E paradoxalmente é por isso que precisamos dele, e que o Outro também precisa; para sermos empurrados à força de medo para nossas vidas, para que aprendamos a amá-la mais porque frágil, e exposta a tantas deidades.

Aingá

Nasceu Judas, não por causa daquele, mas do outro, do qual a mãe, Maria Madalena, era devota. O pai, José, servente de pedreiro na época, foi contra. Vão sacanear, dizia. Que nada, Maria Madalena que tava nem aí pra camisinha, também não tava nem aí pro que o cachaceiro do marido pensava. Daí nascia: Judas Severiano da Silva.

Branquelo, da favela, foi criado como irmão pelos negrinhos do gueto. Jogava futebol, era bom de bola, apelidaram de ladrão de oxigênio, que o bicho era tão narigudo que mais não podia. Mas no rachinha, não dava pra pedir bola. Imagina: Passa a bola ladrão de oxigênio! Já era, o adversário tinha roubado a bola, mandado debaixo das canetas de um, dado um bonezinho noutro e tava feito o gol. Pra resumir gritavam: Passa ladrão! E o narrador: Ladrão rouba a bola, tabela com Buiú, recebe na direita e é GOLLLLL, de Ladrão. E Judas, pegou fama de ladrão.

Quando fez treze anos, deu-se a merda. Seu José, o servente paternal, discutia veemente a qualidade administrativa do presidente, é claro, no boteco. Vagabundo vai, cachaça vem, um desavisado das treze cachaças e dois torresmos do Seu José, chama-lhe de corno. Seu José olha de banda, mete a mão na cintura, o sangue ferve, os olhos vidrados, tira do bolso enfim... a carteira, e decide pedir a conta pra não fazer bobagem. Sabe lá Deus ou o Outro o que acontece no coração da gente. Seu José decide ficar, - seria assumir que era corno botar o rabo no meio das pernas e vazar. Desce mais uma, Caneco (o dono do boteco que já tinha entrado na história). Esse Presidente não presta! Seu Caneco serve contrariado, Tim Tim diz que o Presidente vai dar conta do recado, - desce mais uma, Caneco! O tal desavisado: - não é à toa que a mulher chama Maria Madalena! – José, que era moço ainda, coitado, quebra uma garrafa, pula cambaleando umas três mesas e dá-lhe com o vidro quebrado na barriga, uma, duas vezes, e fica olhando o íngua se estrebuchando no chão, as tripas saindo, o sangue rolando roxo e o canalha rindo... Sabe Deus ou o Outro o que acontece no coração da gente, mas num penúltimo suspiro antes do derradeiro, olha pra José e diz: Até o Caneco já traçou! E morre em “paz”. A turma do deixa disso, que viu tudo acontecendo cagando na roupa dana a gritar: corre, José! A polícia, José! E José, atordoado, meio bobo, sai correndo que nem louco. Desaparece no horizonte, entre as taperas do morro, entre as misérias da vida, entre as putas e travestis das esquinas. E sabe Deus? Mais sabe o Outro, porque José acredita no morto, e jura voltar pra vingar.

Maria Madalena da Silva, ah, havia tantas na favela, umas belas, outras nem tanto, uma prostituta, uma macumbeira, uma faxineira do postinho de saúde (a mais bonitinha) e a nossa, digo, a de José, lavadeira, bordadeira, mãe de Judas, de Mateus, Estefani da Silva, de Jeckison da Silva e da caçulinha Palmerinda, era morena, quase negra, magrinha, jovem sem vaidade, do quadril largo, sambista, alegre, do sorriso mais branco do mundo, e que tinha aprendido a ler com os filhos, e que se divertia lavando roupa e cantando Roberto Carlos no tanque da vizinha. Prendada, cozinheira, apaixonada. Aliás, talvez seu grande erro, apaixonada pelo Seu Caneco, que nunca negou uma comprinha fiado quando nem arroz se tinha “pras criança”.

Depois do ocorrido procurou Caneco, esse negou fogo, saiu fora, - comê mulher de amigo vá lá, mas trata dos fio to fora, e depois esse doido aparece e mata nóis tudo! – Madá fez as troxa, escadinha de filho, rezou pro santo de devoção, e de último favor, pediu trocados do Caneco. Esse, arisco que estava, balançou. Gostava da Madá, na cama, bem entendido. Arrumou morro novo pra Madá, meteu em tudo que é canto, deu tchau e virou as costas: sabe lá, depois esse doido aparece e mata nóis tudo.

Morro novo, vida nova, a vida dura de Maria Madalena era compensada com a alegria da ausência de José, da cachaça, da surra freqüente, do pau que não subia. Madá começou a prestar “favores” pros esposos insatisfeitos da favela. Comida não faltava, água, luz, aluguel do barraco. Nada faltava, Maria dava com gosto, vendo os filhos crescerem.

Judas não fez amigos, lá detestavam brancos, branco era gente inferior, gente que trazia mau agouro, sinal de coisa ruim, que trazia desgraça mesmo. Um ou outro já tinha visto Judas jogar bola, comentavam: - era, era, ladrão de... ah, sei lá, era ladrão de alguma coisa. – E assim, Judas que tinha encorpado, já com seus quinze anos, e a alma amargurada, o semblante de quem tem que defender a vida dos olhares fuzilantes, preconceituosos, botou medo entre as gangues. Entre uma pedra e outra, virava e mexia era motivo de discussão: era perigoso, tinha que morrer, era ladrão do outro morro, já devia até ter matado. – Mas um cara desse gabarito ia ser bom na nossa gangue. Vamo puxa ele pro nosso lado antes que os “filhos de Zebedeu” levem pro bando deles. – Que nada, vamo mata logo! – E pedra a pedra, construía-se o famoso mito de Judas, o perigoso ladrão.

Judas arrumou escola nova, fazia oitava série e lá conheceu Estér, seu grande primeiro amor: uma mulata bonita, 17 anos, tava na sexta série. Saias curtas, batom vermelho, o mesmo riso fácil de Madá. Ia vez ou outra pro morro antigo, matar saudade de jogar bola. Era festa. Todos queriam ver o craque driblando, fintando com maestria, marcando gol de placa. Um dia, num domingo, despediu da mãe e foi jogar.

Chegando lá, aquele alvoroço, todo mundo olhava Judas assustado, todo o morro frente o bar do Caneco, algumas pessoas choravam, (a esposa do Tim Tim chorava desesperada), alguns contavam entusiasmados como o tiro do três oitão arrebentou o crânio do Seu Caneco, as vozes se misturavam na cabeça de Judas, gritos, cochichos, a notícia se espalhando. E a revelação, que muitos já sabiam: Foi José, ex da Madá, pai de Judas. E dá-lhe fofoca... O marido da Madá matou Seu Caneco. O pai do Judas matou Seu Caneco, e chegou como mágica, no Morro da Madalena: JUDAS MATOU SEU CANECO! JUDAS MATOU SEU CANECO! JUDAS MATOU SEU CANECO!

Seu José, que apesar dos pesares era querido no morro, não foi “matado”, afinal Seu Caneco merecia, filho da puta comedor de mulher casada. Ligaram pruns chegados da PM, mandaram prender Seu José. Vingança incompleta, ódio crescente, sem pressa, faltava matar a puta da Madá. Algemado, antes de tomar uns tapas e entrar no camburão mandou avisar: avisa aquela puta que falta ela! Fala pra sem vergonha qui eu venho terminá o serviço! E Judas, o famoso assassino, voltou pro recanto do lar.

Os filhos de Zebedeu arrebataram Judas. Não gostavam de brancos, mas e daí. Um Judas como esse não podia ser simplesmente fuzilado, apesar de ser branco. Judas entrou na onda, todo mundo tratava ele com deferência, protegiam sua casa, seus irmãos, foi convidado até pra jogar bola. Mateus arrumou um bico de entregador na vendinha, Jeckison engraxava sapatos, Istéfani pegou a mania da mãe e ficava com todo mundo e Palmerinda, a caçula, só via TV. Judas comprou aliança de compromisso no “um e noventa e nove”, fez festa de noivado com Estér. Fazia curso de torneiro numa ONG, não se envolvia nos crimes da turma do Zebedeu, mas vivia inventando histórias pra manter a fama, dizia: - to mudando de vida gente, quero casar com Estér, ter família, não mato mais sabe... - E Maria Madalena, que nem precisava mais, agora só dava por prazer.

Cês sabem, notícia ruim voa, e na favela é a jato! Buiú atravessou o morro correndo risco de morte, foi dar na casa de Madá todo esbaforido: - Cadê Judas? Cadê Judas? – Calma, menino, que qui aconteceu? - Teu marido Madá, teu marido fugiu da cadeia, o bicho vai pegá, vem te quemá mulé, vai apagá tu e teus filho! – Madá precisou ouvir mais umas três vezes, esperou o raciocínio que não veio, o ar que não veio, e o sangue ficando meio lerdo, daí viu o seu Caneco, de asinha de anjo, o pau duro. Depois viu Judas gritando: Mãe! Mãe! E viu seu próprio corpo estatelado no chão da cozinha. Depois não viu mais nada. Acordou com Judas na sua frente, copo d’água na mão. Perguntou por Buiú, que tinha ido morro abaixo. – Ele vai matá nóis? Ele vai matá nóis, Judas? Ah, Judas, ce sabe...

Mas nada... passaram dois anos, Estér e Istéfani (que já tinha quinze anos) engravidaram quase juntas, o filho de Judas foi prematuro, o de Istéfani veio dois meses depois. Se juntaram ao lar: Lucas e a mãe Estér, Marcos e o pai Maculé, que tinha traçado a irmã do implacável Judas, (e temia por sua vida se desse o tumé na parida). E segue vida, perfeita, bonita, de plaquinha de “lar doce lar” pregada na parede de madeira do barraco.

Judas saiu do jogo moído, tinha feito três gols, mas no final da partida tomou uma paulistinha e tava com a coxa doendo que só. Jogo difícil, semifinal do amadorão do morro, pensou: - preciso sarar pra domingo que vem, esse campeonato é nosso e ninguém tasca. - Foram comemorar no boteco da Gorete, negona simpática que fazia uma feijoada maravilhosa todo domingo. A turma do Zebedeu nunca tinha ido pra final, mas quem tem Judas, o craque, no time sempre vai vencer – falavam todos. – Judas clamava da coxa doendo. E dá-lhe uma pinguinha “só de leve” pra parar de doer. Judas que nem bebia, acabou tomando mais uma, depois uma cervejinha. E samba vai, pagode vem, Judas, rapaz estudado, deu de filosofar sobre religião. “Nego sangue”, o fortão da turma era ateu, (sem nem saber o que era isso) – Deus existe bosta! Se existisse a gente num tava nessa miséria! Pro “chulé”, que já tava bêbado, Deus era a natureza, Judas falava que não era só isso, senão como é que Cristo ia ser filho de Deus ué? Deus vai, conversa vem, e a gente que nem sabe o que passa na cabeça de Dele ou do Outro fica por entender, como que, naquela altura do campeonato, um branquelo barbudo, parecendo ter dez anos a mais que tinha, do corpo cansado, franzino, a voz trêmula, o rosto e os braços marcados por cicatrizes, entra na conversa:

– Não era pra tu chamá Judas. – todo mundo olha assustado, e o cara continua. – Temei com tua mãe que devia se chamar Lucas. E olha a ironia, é o nome do meu netinho não é? – Judas tenta falar algo mais as palavras não saem, o coração disparado, a vida inteira daquele jeito, passando como um tanque de guerra na cabeça, deixando frágil, sem reação, um zilhão de interrogações na cabeça. – O homem continua: - Era pinguço sim, té dei umas porradas na Madá, mas foi tudo por amor. Fico pensando se os outros três são meus filhos. Amarguei na cadeia, pensava que tava lá só porque era corno. Um filho da puta dum corno. E tua mãe aqui, dando pra todo mundo. Faz essa cara não, cê fez vista grossa mas sempre soube. De onde eu tava eu zelei por você. Fiz amigos poderosos, traficantes, assassinos, até terminei o segundo grau no supletivo. Que cê pensava? Acha que tua fama vem de onde? Ninguém nunca teve medo de ti, tu é um bosta Caxias, mas eu te fiz homem, mandei te proteger, mandei falar que tu era o bam bam bam, pra todo mundo te respeitar. O morro é dos negros, um branquelo de bosta que nem tu não durava uma semana. Eu escolhi, conduzi teu destino pra tu virá home. E tu sempre me odiando, me negando. Deus? Eu sô teu deus! E por haver me negado, chegô a hora da justiça pra ti. Agora você vai conhecer a verdade, e a verdade vai ti libertá. Chegô a hora da minha vingança. – Dona Gorete, traz um copo cheio pro menino. – Pega esse envelope, depois que eu sair tu abre, e vira esse copo de cachaça. Tá terminado. Fiz o que devia fazer. – E dizendo isso, desaparece no horizonte, entre as taperas do morro, entre as misérias da vida, entre as putas e travestis das esquinas.

Judas, segura o envelope ainda fechado, não compreende nada, só tem medo, nem sabe porque, mas o envelope... o envelope... pega um isqueiro, pensa em queimar, desiste, vira o copo cheio, chora, pede outro. A coxa não dói, o coração queima, uma aflição esquisita, um nó na garganta. Cambaleando, Judas, o covarde, foge pro silêncio do alto do morro, o vento traz a sensação de liberdade, o convite da morte, e ele sabe que é chegada a hora de saber a verdade de seu deus, e então, abre o envelope.

No princípio, seus olhos se enchem de lágrimas, depois vão tomando o vermelho do ódio, da vingança, da ausência de vida que passara seu pai, nos anos de prisão, fuga, rejeição dos filhos, e pensa: corno! Corno! E ri, e gargalha endemoniado. Em suas mãos, fotos de Estér. Estér e “nego sangue”, trepando que nem loucos, e ela chupando o pau do nego sangue e dum outra cara, os dois duma vez. E ele ri, gargalha endemoniado, gritando: Corno! Corno!

Desce o morro, Estér amamenta o filho amado, a mãe borda vendo TV, Istéfani põe Marcos pra dormir... A plaquinha pregada na parede de madeira diz: “lar doce lar”. Judas entra, beija ardentemente os lábios de sua esposa, depois beija a testa de sua mãe. Sem palavra, sai lentamente, tranca por fora o cadeado da porta, pega seu isqueiro, a gasolina do clandestino da esquina e lentamente vai ateando fogo na base do barraco, um pouquinho aqui, outro pouquinho ali, e o fogo se alastra, os gritos de desespero se espalham. Judas se senta, e fica admirando a composição das cores, o fogo faz um show de luzes, ora azul, ora vermelho, ora laranja, e as cores se misturam e dançam e bailam reverenciando a deus. Um pouco mais distante, um velho branco, de barba branca e olhos cansados, assiste a tudo.

O morro alvoroça, tentam apagar o fogo, mas já é tarde. Nego Sangue, temendo a vingança do poderoso Judas, grita: - Foi ele! Mata! Mata! E ainda gritando lança uma pedra na testa de Judas. A revolta iminente sela o destino. Judas caído, é apedrejado enquanto aos brados lhe xingam, condenam, amaldiçoam seu pecado.

Num penúltimo suspiro, antes do derradeiro, reúne suas forças e tenta dizer: - atire a primeira pedra... atire a primeira pedra quem... e finalmente, morre em paz.