DONA MARIA

Dizia-me uma velha vizinha, no limiar da década de 1980 – quando as surpresas ainda não antecedem nenhuma covardia – dizia-me qualquer coisa a valer uma vida. Os enunciados rompiam o lábio, cerrando-o para sempre. Mas as frases lhe retornavam perdidas no escuro do rosto profundo e vazio, como uma mão aberta e magra. Intenso aquele rosto interrogativo na maneira de ensinar um menino a conviver com a alma salva. Nunca descobri o porquê de guardar aquela senhora em vaga lembrança. Dali me encontrar cá, talvez explique minha sedução.

As ruínas da casa documentavam defesa concluída no atenuante de permanecer vivendo. Era aposentada e viúva de dois retratos sempre na mesma posição na parede. Tratava-se de um único esposo, mas a forma de relancear o olhar, enquanto tateava os retratos, dava a impressão de querer reunir um soluço entre duas vidas. Eu deveria contar, mais ou menos, onze anos. Oh, sim, aquele cuidado feminino me fazia considerar o quanto ela fora bonita na juventude.

Dona Maria tinha hábitos noturnos, mas acordava antes de o sol suspender-se no horizonte; quase ninguém conhecia sua luta diária, a não ser pelos constantes resmungos, quando, de volta, as folhas da mangueira lembravam-lhe a lida.

─ Ainda corto esta árvore, relutava dura e ingênua, mas o gesto de ódio e espanto dizia que, se não houvesse folhas, as manhãs a fariam desastrosa.

Era nas tardes nossa maior chance de contato. Puxar água de poço dava a ela o ar de solidariedade em apuros. Eu descia a corda enquanto a velha, embalando-se, assegurava que o balde poderia carregar-me bem, se eu quisesse tocar a água. Custou-me perceber a frieza doce das palavras escondendo medo e proteção. Mas um menino à beira de um poço a fazia imaginar a coragem de um homem dali ao instante da violência abafada, como se a água chegando lhe compensasse a ânsia de quem já não pode esperar.

─ Basta este galão, senhora?

─ Qual o quê! Esqueceu as oito voltas pra completar o pote!?

Discretamente ríspida, ordenava-me o esforço de homem antecipado no ranger das cordas a deslizar na bomba d’água manual. O ranger parecia-lhe reclamação de um tempo no qual menino suplantara a sede nos desafios das profundezas de um poço. Ela ganhava olhos avançados quando, num lance mirim, meu medo dava lugar às fantasias na nascente d’água.

Tinha o olhar compassado ao cobrar-me escola. O gesto traduzia um quase charme reservado. Por pouco seria rico aquele olhar, caso continuasse a recordação de que, com mais estudo na vida, quando fugia da seca, poderia ter viajado para São Paulo, ao invés de enterrar o marido no Piauí.

─ Já decorou o ponto?

─ Já! E já tô passado na tia Zizi.

─ Hmm...

─ Tenho no caderno as quatro operações.

─ Não se bota em panela conta e letra...

Dito isto, começava eu a perceber o silêncio da velha parecendo luzir o túnel de uma verdade dentro do coração violento e pretérito. Calar-se dava ao seu rosto alguma concepção a devolver-me súbita responsabilidade de filho: minha dor por provocar nela alguma verdade breve e arraigada. As feições no silêncio compunham uma mulher ainda viva e com dois braços salvos na minha culpa de ter a palavra final. Dali em diante, empenhava-me na distração com a viúva sem concepção, como antes, sem alma própria, senão a do respeito personificado na terceira idade.

─ Passamos do pingo do meio-dia, menino. Caminha que já faz falta na sua casa. Se fosse meu neto, ah!... Se fosse meu neto, mas vejo que precisa apenas ser avisado. Ande! E não diga lá que tá perdido só porque tirou o direito de uma viúva.

Havia decisão em seus discursos, mas se embargava, caso fosse interrompida por terceiros. Eu a olhava com interesse sem passividade. Tinha minha hora de sentir o mundo consumido nos frágeis imperativos de Dona Maria. Sua boca não deixava escapar os verbos que mais temia dizê-los; sentia necessidade de conjugá-los, mas as coisas presentes supriam a incapacidade de conhecê-los. Olhando para a casa limpa ou vendo-me partir, eu a imaginava imóvel, o vento da janela lhe devolvendo um sopro de mulher bem amparada.

Àquela hora, a casa era trancada com a mesma exigência com a qual fora construída. Os vizinhos sempre tolerantes, porque um costume dos velhos era isolarem-se durante e um pouco depois do almoço, como se a digestão dos idosos trouxesse um mistério de liberdade para as tardes.

Mas em casa meus interesses em nada me ligavam àquela mulher. No almoço, quando muito, recordava-me que Dona Maria teria me usado o bastante para consumar-se sua residência fechada. Mas lembrar o retorno a seu endereço confirmava apenas minha liberdade de ser criança. De resto, não havia maiores impulsos; antes um jogo de interesses: ela recebia minha gratuita e braçal visita e eu, minha agilidade em lidar com uma velha. Quando dizia mal de algum vizinho ou se entregava a narrar as melosas aventuras dos netos, ela sentia o gosto da velhice na minha ingenuidade assombrada. Um rapazote devia era procurar serviço, dizia-me com um tom de desprezo e justiça; ela tão dona de si, tão completa no seu egoísmo em ter muita idade. Em verdade, não era nem tão boa, nem inteiramente má. Sabia sorrir para compor atenção própria, mas também doava, de vez em quando, um pouco de esperança de vida de quem a tudo vê iminência. E mais: a rigidez no seu rosto não me fechava espaço em sua vida. Lembro-me da velha pedindo para eu aguar os girassóis; seus olhos com cerimônia me chamavam jardineiro. Em outras edições, esquecia a dificuldade em apanhar mangas do chão ao conferir nos mais jovens tolice e continuidade.

No fundo, sentia ser estranho o hábito com a velha, quando eu podia escolher as ruas. Mas me acostumei com a estranheza; suas pequenas dores diárias me encorajavam naquela casa. E não me fazer mal parecia um bem inestimável. Uma velha, valendo-se de suas limitações, tão forte por contar com o bom senso dos outros.

─ Nunca se engane. Um homem precisa de um dia se casar. Ainda é cedo; avexado é que se endireita na beira de um poço, e já pensa que a água é coisa ganha. Na sua idade, meus irmãos sumiam nas carreiras pra mata e voltavam com Cutias. Eu ficava no mungunzá. O que tem aprendido além de levar caderno debaixo do braço? Olhe! Quando assumir a responsabilidade de uma casa ...

Sentia-me irrequieto com os julgamentos da viúva. Nem sempre achava tratar-se de estar apenas azeda. Às vezes discursava sem tom vacilante, deixando-me traído, como tornar falsa a verdade por não mais podê-la. Uma senhora ditava o que eu precisaria saber. Mas a predição dava-lhe um peso a mais à velhice: a dor de ver na soma da vida a distração em ter sobrevivido. Talvez não tivesse idade para perceber a mulher acusando-se ao temer não conferir em mim algum receio.

Dona Maria foi paulatinamente fazendo parte de minhas permissividades em casa. Ser livre para ver uma velha me tornava provisoriamente acima de uma criança. Num dia de vida, escutava minhas pequenas e medíocres narrativas escolares. Lembro-me de sua voz exclamando: ”Leia agora a da floresta gigante!”. Atenta, a velha corava e o brilho dos olhos enfrentava o enorme passado. Procurava um desfecho ainda não revelado por mim. Temia construir outro rumo à trama, reclinava o corpo e o velho invólucro parecia ter parte no poder da imaginação.

─ Quero que escreva uma carta. Já estou de vista curta. No meu tempo muitas moças noivavam por cartas. Escrevi muitas, tenho todas guardadas de junto de mim.

─ Escrevo!

─ Avia! Vai ser agora mesmo.

Eu escrevia com caridade, mas sem muito coração. Estava feito: a satisfação em estar compondo as cartas tornava tímidas as atitudes da velha.

─ Agora vou ler pra senhora.

Esta segunda tarefa era uma exigência muito mais minha. Lia com autoridade. Minha segurança em não ter na velha a professora fazia-me adotar a seriedade necessária, própria das boas oratórias. A velha me encarava surpresa e confiante. Suas antigas cartas pareciam retóricas, quando a verdade lhe ressurgia na minha fala assegurada por de um público ignorante. Observava-me com difícil doçura para conseguir aprender o que me ditava. Seus ombros se contraíam e ela reclinava o pescoço, com a satisfação de quem cria as palavras a um intérprete. Seus netos distantes, o pé de erva-doce, o cercado, o gogo nos pintos eram seus temas constantes e eu, cronista de uma velha sozinha, acabei conhecendo o universo gotejante de Dona Maria. Profundo universo e tão fácil o que fazia dela apenas uma senhora viúva e pobre. Ela buscava forças nas minhas linhas mal escritas e soprava um fiapo de voz; eu me sentia abnegado, tinha pontuação própria e uma certa autonomia linguística, em razão da nossa ignorância vaidosa. Minha exibição se correlacionava com o olhar engajado da velha a tornar-se excessivamente investigativo.

Ah, sim, não lhe sobrava espírito para compadecer-se do meu medo de jabutis. Deviam estar velhos de tão grossos e tranquilos. Talvez fosse a tranquilidade que os fazia verificar o mundo com a frieza de quem atravessou muitas décadas. E não precisar da velha para garantir subsistência davam a mim uma cisma convertida em pavoroso silêncio. Dona Maria os tinha no quintal como a dispor-se de posse valiosa e inútil. Contavam cinco e me era sinistro ouvir da viúva que em criança os ganhara. Quando o esquecimento me fazia salvo de minha estranha aversão, lá vinham eles com o mesmo gesto nobre de selvagem com poder de somar-se em estado de esconderijo. Dona Maria os emborcava para analisar meu temor tão frágil quanto um animal lento e indefeso. Emborcava-os com velhice exigente no espernear do bicho. Minha convivência com os sustos tornava-se solidariedade para ela.

─ Este aqui já foi meu predileto. Deve contar de 1942; por aí... Lembro que batizei ele de Mágico, porque vivia se enfiando no casco. Sabe conhecer a jabota no meio deles?

Falava, falava enquanto libertava lentamente o animal. Não sei por qual impulso guiava o Mágico afastando-o de mim. Era assim minha covardia pressentida pela velha. Era assim que se apoiava no longo vestido agora tão somado a ela. Se eu corresse, a viúva teria seu momento de perigo – o jabuti devolver-lhe-ia a mesma ingenuidade de quando o possuíra, a mesma dor de ter sido tolamente receptiva. Talvez ela tivesse agora força para indagar: “Fui feliz na vida?”. Se mudasse a maneira, diria, em suspiro quebrado: “Ele é apenas um menino.” Mas preferiu fugir do perigo que um dia a fez viver. Meteu-se no quarto e, antes de bater com violência a porta, vi a proximidade de uma lágrima decompondo-lhe o rosto em ódio e insegurança.

─ Malcriado!

A única palavra soava interrompida e labiríntica, assemelhando-se a uma comida forçada à garganta. Soava vencendo-a; as anáguas agora lhe concebiam maior sustentação. De posse do quarto, a casa se tornava ainda mais assombrada. Costumava compadecer na cama com o rosário na mão e a atenção nos retratos do marido. Fora feliz? Ao menos a julgar até aquela época, padecia nem alegre, nem triste. A meia-luz diante dos fatos a fazia simultânea a tudo: a frieza apenas constatava o silêncio; as concessões, os improvisos dos mais de oitenta anos. Mas trancar -se no quarto não lhe bastava por muito tempo; logo, logo a velha ressurgia com a mesma obliquidade com que fechava os sorrisos.

─ Pode ver comigo os pintos empenados? O amarelado vai ser bom de briga. Vive de peito alto e alcança o mais alto poleiro.

A partir daí, não pude acertar quem de nós era o malogrado. Ainda me estava bem vivo o evento anterior, mas a viúva parecia agarrar-se unicamente às coisas imediatas, consumíveis. Quando era obrigada a lançar-se em tal ou qual retrocesso, sentia-se subitamente definitiva. Nesse momento, o quintal e a casa eram tão dela a ponto de a velha reconhecer-se covardemente nas pífias conquistas. “Fui feliz na vida?”. Eu parecia afrontar-lhe a interrogação no seu hábito de não esperar por minhas respostas. Era assim oitenta décadas e pouco se rendendo a mim.

─ O avermelhado é que vai ser a crista do quintal, senhora, dizia eu, com repentina propriedade.

─ Nunca me enganei com meus pintos. Ligeiro! Jogue milhos e vai ver a esperteza do meu eleito, dizia ela, ansiosa.

Os frangos bicavam primeiro, deixando o pinto amarelo numa plumagem em penumbra tão desértica quanto à aposta medrosa da velha. Vendo a disputa com os milhos, Dona Maria se afogava com a bondade de quem se apega, porque perdeu. Tangia as aves com a responsabilidade de uma camponesa. De mim nada eu podia explicar que não tornasse necessária a solidão da viúva.

Mesmo relutando por puro capricho ou disfarçando insuficiências, havia nela o que conhecemos apenas quando a ilusão de estarmos sempre à frente cede lugar ao amargo da nossa força desnecessária. Nosso vigor é guardado não por reserva, mas porque estamos nos cumprindo no outro, aquele outrora inimigo sem ter nos desafiado. Esta força pela qual agora me faz adulto me dizia em menino que dentro de uma velha insistem todos os momentos, embora as chances sustentem a custo as faces de uma vida inteira. Sozinha no mundo, sua resposta maior era viver um pouco mais, derramar os instantes de felicidade difícil. Caberia a ela acordar cedinho, ocupar-se de uma vida remanescente, estacada num corpo velho sem pedir nem dar nada; apenas substituindo a esperança antecessora das coisas.

Mas o dia geralmente me acontecia enorme e numa disponibilidade que incluía os encontros com a velha, como se inclui algo que para existir é preciso ser lembrado. A vida podia também ser compreendida em intervalos possíveis, porque fáceis, o mundo funcionava em silêncios concebidos por pura indiferença. Ela fazia parte do meu aprendizado intuitivo, o mesmo das necessidades, para localizarmo-nos no agora de nós. Sua covardia talvez não estivesse em amedrontar um menino, mas em fugir dele, quando a velhice é a arma. Havia na casa uma redenção, uma vontade de capturar as coisas boas, aquelas sentidas quando ninguém mais pode provocá-las. De noite, o galinheiro fazia dela a arquiteta dos poleiros; o poço sem mim, os bichos todos compunham a noite a salvar o dia fugitivo. “Tenho todas de junto de mim”. O que fazia de Dona Maria um passado inteiro? Com qual força despejava lágrimas perdidas no escuro? Não é absurdo imaginar as cartas em alguma parte divertindo-se dela. Desprendia os cabelos e o pente fino, substituído pelas presilhas, dava a ela uma neutra aceitação ao reconhecer-se mal no espelho. Ajustando o rádio de pilha, ela esperava irrequieta uma sintonia e os olhos rebrilhavam obscuros, livres da idade. O corpo não suportava o coração e o medo de uma fatalidade iminente colidia com a sonoridade desafiando em ruídos os dedos trêmulos da velha.

▬ Não se toca mais cantoria como antigamente, sussurrava com malícia e o custo da expressão em silêncio a ajudava a sentir-se viva.

A melodia florescia a mulher a vaguear a casa com seu banho de colônia. Dançavam as mãos levadas à mesinha, onde se instalava o pequeno rádio. Excessivamente presente à sala, principiava reproduzir alguns versos, mas a verdade com que ela aprovava seu violeiro lançava-a à timidez da mocidade. Olhava-me com a mesma verdade e nossos olhos duravam a expressividade do compositor. Era quando eu podia constatar minha lucidez diante de uma mulher humilde e velha. Meu espanto disfarçado em apreciador de cantorias resumia o estado de meninice, com o diferencial de ser o único a visitá-la categoricamente.

Nada valia mais, senão sua casa. Perdera esposo, os filhos viajaram, os netos, apenas nas cartas, visitas raras; minha presença quase sempre se protagonizava naquele arranjo moribundo ao que existe na força de uma chave severa e surda. A luz da lamparina poupava energia elétrica, tremeluzia seu corpo em distração; a mim restava somente a breve comoção de calar para fazê-la sentir-se acompanhada.

▬ Dona Maria, com quantos anos se casou? A senhora...

▬ Minha nossa!... ─ interrompeu-me, num gesto contra si a estremecer o rosto. ▬ Conheci meu noivo na hora de casar. Não era mais que isso para a conta de trinta anos de aliança, não fosse a maldita sezão que arrasou meu José. Ahhh! Escuta essa peleja! ▬ silenciava logo depois, e os olhos pareciam arrancar o som da viola mal reproduzida no rádio, dando a Dona Maria um ar surpreendente de donzela livre de “caritó”.

O rouge do rosto parecia querer prender aquele momento para sempre. Em alguns sábados tudo ganhava uma aparência melhor. A própria casa pertencia a um mundo invadido pelas surpresas outrora adormecidas nas certezas, quando lhe ensinaram um modo de viver. Subtraíra uma parcela duvidosa de si, e agora estava possuída por uma traição de alegria que antes estragaria tudo. Endireitava as presilhas no cabelo e não sentia o suor do corpo a principiar um novo esforço entre uma cantoria e outra. A vizinhança estaria em algum lugar observando? Alguma zombaria? Não, nada se expressava lá fora; tudo estava reduzido à minha atenção. Suportava a felicidade no vinho tinto trazido como um segredo de última hora. Tardiamente eu via um corpo aceso na embriaguez próxima a uma cobrança devolvida em vantagem e superação.

▬ Já viu casamento na roça!? ─ sorria ferozmente e os dentes postiços acrescentavam um apelo semivivo à boca murcha.

▬ Já sim, senhora, é bonito na roça...

▬ Vai ficar pra titio...

▬ Caso quando completar 18 anos, dizia eu com um tom ousado de voz substituindo a perspectiva da afirmação.

▬ Eu já possuí uma casa no Ceará... Minhas amigas parambuenses tinham inveja porque meu esposo ia na loja encomendar a melhor fazenda pra mim.

▬ É!...

▬ Eu sou é forte...

▬ É sim!...

▬ Já teve medo sem saber de quê?

▬ Lá em casa de noite tenho medo do combogó, quando passo na cozinha.

▬ Se alui!... Não vou mais vender coentro, nunca mais...

▬ Eu tenho medo...

▬ Seu aboletado mofino. Escuta essa peleja.

Aos poucos o som era interrompido pelo silêncio das oito horas, desprendendo uma liberdade insuportável. Comedida, partia-lhe o que a pouco não possuía nome, mas ela sabia bem dizê-lo sem nenhuma preparação que não fosse descoberta. Só dizendo haveria a palavra e depois a reinvenção dela, sem nada a dizer. Do contrário, a palavra poderia desmoronar-se em silêncio nunca mais refeito. Algo a dizer? Eis o fim da festa.

Algum tempo depois, Dona Maria retornou a Parambu. Dizia ir morar com um dos filhos. A casa foi mais tarde comprada e demolida. Hoje não haver sequer resquício da velha me decodifica qualquer coisa de lembrança. Talvez tenha morrido de tanto afinal lá pelos quase cem anos. Em verdade, nunca a vi seriamente encostada pela artrose, nem a idade tirava da falta de possibilidades as marcas de uma aceitação ruidosamente serena. A casa coincidindo a Floriano Siqueira com a Neco Teixeira foi engolida pela inscrição do tempo a alimentar o passado anônimo de Água Branca. Mas de Dona Maria, sim, o anonimato moldura a ilusão de minha imprecisa lembrança. Desapareceu também o poço? Senhora, quando acaba a água? ▬ perguntava à velha, num suspiro antes de vida que de cansaço. Rapaz, a água mina pra sempre, confortava-me, surpreendida com a profundidade do poço de onde ecoava sua vaga resposta.

▬ Não se esqueça de se limpar antes de cair na rede, gritava, apontando-me a distância de casa.

De volta a casa, tudo recomeçaria: o copo de leite antes de dormir, leves reclamações habituais, nenhuma pergunta de acusação. Eu caía na rede e sentia na família algo vagamente verdadeiro, fixo. O que estaria fazendo a velha além de economizar energia com a lamparina? Estaria eu em alguma flama do seu frio e frágil rastejar? Indecisa questão veio no tempo, mais indeciso é hoje lembrar Dona Maria respirando pesado, sem interpretar os próprios pensamentos, ocupada com a inocência de ser a única saída, quando se é tarde demais.

Conto premiado na antologia Pequenas Histórias – Grandes Emoções, da Editora Belacop, São Paulo e na Antologia 21º Concurso de Contos Paulo Leminski – UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Editora Scortecci.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 16/01/2010
Reeditado em 22/01/2012
Código do texto: T2032864