Aquele Dia no Ônibus
Lembro como se fosse hoje: Estava no ônibus, voltando do trabalho e do dia estafante. O dia era nublado, o caminho, o de sempre: Via Expresso, Avenida Brasil e Costa e Silva, da onde então eu seguia a pé. Meia dúzia de tripulantes solitários e taciturnos ocupava o assento. Lembro de estar sentado do lado direito, lado da janela, no último banco que dava costas para a porta de saída, vindo logo após a série de bancos traseiros, um deles, ocupado por um mendigo de suíças mal feitas, roupa encardida e um saco na mão (tais cenas sempre me cortaram o coração, entretanto nunca lhes deixei dinheiro, posto que seja fato a maioria destes gastar o que lhes é outorgado naquilo que não é pão).
O ônibus parou... Rodando a catraca, entraram duas senhoras bem vestidas, que muito conversavam aquelas conversas fofoqueiro-cotidianas que, sem dúvida, eram desprovidas de virtude (e por isso mesmo prefiro não relatá-las, apesar de terem sido bastante excêntricas). Segunda parada. A coisa melhorou um pouco: Quatro belas estudantes adentraram, sentando-se próximas da onde eu estava até então. Pena que fossem quatro! Se fosse número ímpar podia uma delas sentar-se ao meu lado... Se bem que percebi as caras fechadas e desdenhosas com que me devolveram a paixão momentânea... Tudo bem.
Na quinta parada (se não me engano) foi que tudo começou: Um velho faz sinal. A figura era um tanto cômica e sua silhueta era inconfundível: Reboliça e austera. Chegou todo prosa, já fazendo fama, falou alguma baboseira ao motorista que demonstrava impaciência e veio feliz, desfilando sobre o pedaço de ferro em movimento e soltando gracejos para os passageiros.
Olhei. Faltavam poucos bancos a serem ocupados... Essa não! _pensei eu_ Quer ver o velho resolver sentar aqui e importunar logo eu?! Foi bom presságio: Andou até os últimos bancos, viu um banco vazio ao meu lado e tratou de ocupá-lo. A conversa fiada veio em seguida:
_Tudo bem jovem? Deixe-me sentar aqui. _ disse, soltando um suspiro que mais parecia gemido.
_Tudo bem_ retruquei.
_Ah, que dia!
Sorri (Acho que ele esperava algum comentário meu...).
_Mas que país, que país! Um velho como eu, com meus setenta e quatro... Ou seriam setenta e cinco? Enfim, um velho como eu ainda tem que pagar para ser transportado!
Respondi com a face de desapontamento para compartilhar do raciocínio, apesar de que não fazia sentido alguém naquela idade pagar passagem... Certamente era falta de memória (e das graves), pois eu mesmo vi muito bem que não pagara quando subiu a bordo. Não queria desapontá-lo... Imaginei eu que um senhor de idade assim deveria receber algum cortejo e ter minha consideração, por isso me esforcei para doar atenção sem me comprometer envolvendo-me no diálogo. Mas conforme foi falando, comecei a ter mais atenção à sua pessoa: Para quem tinha setenta e quatro (ou setenta e cinco), estava muito bem, acredito. Fato talvez explicado pelo seu chapéu diferente... Ah, sim, não era chapéu! Era uma boina de militar... Eu sabia reconhecer, afinal meu pai e muitos de minha família foram militares. Também pelo brasão, sem dúvida era de um tenente do exército aposentado... A roupa era normal, não estava fardado. Sei lá eu por que o sujeito usava a boina (por patriotismo ou por orgulho, deduzo as causas prováveis). Seu rosto sisudo misturado as rugas salientes, ainda acompanhadas pelas sobrancelhas espessas e os ombros um tanto imponentes (daqueles ombros que não se deixam cair pelo tempo) confirmavam a milícia, davam o parecer grave e rude. Apesar disso, seus lábios finos e ressecados, juntamente com a ponta do queixo afiada, faziam um paradoxo e desmentiam a história. Bem que o sujeito tinha carisma...
_É filho, aproveite a vida que um dia você também vira um velho caduco.
_Ora, o que é isso! _dessa eu tive que rir.
_Tenho muita dó de minha mulher. A velha não deve mais me aturar. É assim mesmo: Na juventude tive cá minhas dezenas de paqueras e namoros gorados, mas enfim somente uma, quem eu menos esperava, é a que me foi capaz de amar. Ainda mais depois de perder o carro e não acompanhá-la à hidroginástica! Para superar esses conflitos, _ continuou_ na verdade, a gente acaba acostumando. Tudo é questão de costume: Acostumei-me a passar frio nos acampamentos do exército, assim como me acostumei a comer peixe só porque minha mulher não gostava de carne assada, como me acostumei a voltar a andar de ônibus em pé nos dias mais lotados, pela “gentileza” dos meus compatriotas. É tudo questão de ambientação!
_É... _minhas respostas eram sempre sucintas.
_Mas quer saber? Vivi muito nesse mundo. Chorei e sorri, mas hoje só dou risada de tudo que fica na lembrança, até que eu também seja uma lembrança. Eu dou mesmo risada!
Que pessimismo! _pensei eu_ E apesar de tudo, estava lá o velho, todo inteiro, me contando mil e uma histórias e lições de moral um tanto esdrúxulas.
O tenente levantou novamente e foi atazanar o motorista, tentando se achar na cidade (mal sabia para onde ia). O motorista respondeu amuado, mas o velho se achou. Passou por mim novamente...
_Bom dia rapaz e que aproveite bem a vida.
Afinal, a conversa não fora tão ruim assim... Dirigiu-se à porta de saída, apertou o botão de parada (não conseguiria puxar a corda), desceu e prosseguiu sua caminhada lenta, manca e irrisória. Ali pensei eu naquele homem, que um dia comandou e dirigiu, e que agora era dirigido pelo veículo do tempo, tendo ignorado pela sociedade o seu esforço, seu trabalho pelo qual lutou trinta longos anos da vida em prol do país. Mas ali da janela eu o via. Ali estavam: sua boina, seus passos e sua honra. Seu passado, presente, futuro, erros, acertos e sua consciência de que suas obras o acompanhavam.
Quando desci, estava chovendo. Dei às costas as meninas, passei pelas duas moças, tirei a carteira (só achei uma nota de vinte) e dei meu dinheiro ao homem no fundo do ônibus.
Moral da história? Acredito que seria essa: Viva, lute, sorria para a vida, e não espere do mundo as “honras ao mérito”.