ENGENHO

Minhas pernas sobre o canavial preto.

Canções e danças, rostos e festas. E como as mulatas sabiam fazer a festa! Velho engenho dos sons dos escravos, risadas empoeiradas vindas da antiga senzala... Fogos e danças, rostos e festas!

Rostos e danças, mãos, quadril, olhos, bocas e festas!

E vinha o Carlinhos contar histórias estranhas, fazer os menores tomarem medo da noite, das portas fechadas, dos quartos escuros... Carlinhos possuía uma coisa...Um...Um gosto pelo desespero dos outros que eu não apreciava, ao contrário, assustava-me aquele olhar vermelho...

Um dia, numa noite de festa no engenho, Carlinhos contava suas histórias e resolveu pregar uma peça no coitado do Aurélio. Chamou-lhe no canto e pediu que trouxesse umas pedras que ficavam atrás da senzala, o menino olhou-o com medo e ia dizer que não, que não queria ir para as bandas da senzala, tinha medo de assombração, mas Carlinhos foi ameaçador, todos iriam caçoá-lo até o fim das férias se não fosse pegar as pedras. Tentei amenizar a situação e falei que ajudaria Aurélio, iria com ele até a senzala. Carlinhos não consentiu, era o mais velho e mais forte, todos o respeitavam. Eu não...Não era respeito, antes de tudo, era temor, no entanto, a cada brincadeira desmedida mais o detestava.

Aurélio caminhou em direção à senzala, com as pernas bambas, o rosto pálido, suor...Suor...Medo, transpiração.

Muitas horas se passaram e nada do Aurélio voltar. Da zombaria inicial da maioria o que se via, aos poucos, era a apreensão, a dúvida. O único indiferente a tudo era Carlinhos.

Imóvel, sem demonstrar interesse.

De repente, o mórbido contador de histórias ordenou que fôssemos todos juntos para a senzala.

Fomos.

A caminhada fora silenciosa, nada de risos, apenas o pavor que tomava conta de nossas pernas, nossos braços... Os gritos da folia na entrada da fazenda pareciam uma premonição...

_ Carlinhos! Ele está no banheiro, nos fundos da senzala! Berrou um menino sem camisa que surgira no meio de nós apavorado.

_ Eu não te falei para ficar escondido? Eu não falei? Reclamava Carlinhos.

_ Eu não queria! Eu não queria! Juro! Disse novamente o menino em nossa direção.

Corri mais do que os outros e consegui chegar ao banheiro que fora construído há alguns anos para uso dos trabalhadores e depois abandonado. A porta estava aberta e um braço branco aparecia no chão...Aurélio! Os demais meninos apareceram. Aurélio, morto...Sobre ele, tijolos e telhas. A parede lateral cedera... Ouvia os gritos de desespero de todos, Carlinhos não sabia o que fazer, com as mãos na cabeça confessara o combinado com o menino sem camisa, prendera Aurélio...Alguns minutos somente...Por que a parede tinha que desabar?

Não sei o que senti, sei que meus olhos arderam, meu coração pulava pela boca e fui pra cima do Carlinhos com muita raiva, ele não esperava a minha reação e bati, bati, bati, com os punhos fechados, com os pés, com um pedaço de pedra...Sentia-me alucinado... Só parei quando o senhor Antunes agarrou-me pelos braços...

Raiva

Tudo era choro e tormento, desgraça: o rosto de Aurélio desfigurado, o sangue de Carlinhos no chão, o desespero incontrolável da mãe de Aurélio...

Encerrou-se a festa em meio ao luto... Adquiri minha dignidade naquele dia, quando enfrentei a prepotência do Carlinhos...

Nunca mais o João Bastos festejou o mês de junho.

CAMPISTA CABRAL
Enviado por CAMPISTA CABRAL em 11/10/2009
Reeditado em 12/10/2009
Código do texto: T1859721
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