UZDO
Myra observava com atenção as palavras de Uzdo. Uzdo dizia coisas espantosas do céu, do vento, do mar gelado e escuro e de todas as outras coisas que conhecia no mundo. Os seus olhos brilhavam cada vez que Uzdo contava as maravilhas da terra do fogo ou das aventuras dos índios vermelhos. E era encantadora a forma como contava todas aquelas histórias.
Ele vivia a comer gafanhotos secos, o seu prato preferido, a olhar para o mar em dia de tempestade e a brincar com as nuvens grossas quando chovia na pequena aldeia. Uzdo se parecia com um homem: alto, magro, barba cinza e grossa. Entretanto, não era homem. Não era bicho. Uzdo não era coisa alguma, ou melhor, era simplesmente um livro ambulante que abria os grandes olhos azuis e as palavras pareciam queimá-lo de tão impacientes, ansiosas para sair daquele corpo.
Uzdo não era um bruxo.
Todas as vezes que contava algo era como se abrisse um mundo repleto de vozes, de cores, de cheiros... Não havia lembrança, mas sim o mistério de como aconteciam.
Então, sentada em uma pedra, Myra pediu a Uzdo para que contasse mais uma história, só para ela.
Uzdo virou-se para a pequena menina de olhos claros, igualmente azuis... Dois pedaços do oceano. Olhou para o mar, estava calmo. As ondas, mirradas nem chegavam aos seus pés. O sol ardia à pele e o céu azul se misturava ao azul dos seus olhos, dos olhos de Myra e olhos e céu eram um só.
Apontou um barco de pesca muito longe. Myra sorriu. Uzdo começou a falar. De sua boca uma voz que não era a sua e, de repente, outra e mais outra e mais outra tomavam corpo, volume, vida e movimento.
Os barcos tentavam alcançar a ilha terceira antes da tempestade. O mar estava agitado e as ondas cresciam assustadoramente em direção à embarcação. Jork não conseguiu se equilibrar e tombou nas águas escuras. Preocupados que estavam em manter o barco controlado não viram a queda do infeliz.
A água estava muito fria e em relâmpagos de consciência Jork sentia que descia mais e mais. Cada vez mais escuro. Não sabe o que o tocou, um vulto, um peixe, não sabe. Deixou-se ir para as profundezas, arrastado por alguma coisa.
Num rasgo do tempo e se encontrava deitado em uma cama de ferro. Descansava num quarto antigo, janelas grandes, um pequeno vaso sem flores. Um pequeno mundo desconhecido. E, assim como nas águas negras um vulto surge – por mais que tente enxergar não consegue distinguir o rosto – estende um papel e desaparece. Um bilhete. Um bilhete apenas. Um bilhete e palavras mal escritas, mal desenhadas, desarrumadas até. Não se preocupe! Está tudo bem! Sentimos sua falta...:
Um bilhete e um nó na garganta. Um bilhete e uma dor nos olhos. Olhos secos, olhos úmidos, olhos secos, olhos úmidos. Quem¿ um bilhete de quem¿ Meu Deus! Meu Deus! A letra... sabe a letra, sabe o desarrumar das palavras, mas não sabe quem... Olhos secos, olhos secos, gemido, tontura, desmaio.
O tempo fora do tempo. O tempo sem tempo. O tempo que mata o tempo. Um rosto e um bilhete. Olhos secos e úmidos, tudo ao mesmo tempo. Um bilhete de quem? Estaria louco? Um bilhete...
Jork! Jork! E a voz rouca, porém firme, parecia sacudir-lhe os braços e a cabeça e a consciência. Jork! Jork! Olhos secos, olhos úmidos, dedos frios, mão gelada, tontura, tontura, nada. Outro desmaio.
O relógio avança sem demora, como as folhas do outono, a melancolia do inverno, a poesia da primavera e o espasmo do verão.
Levantou-se, chegou até a porta, força a maçaneta, escuta um estalo. Está aberta. À sua frente um corredor, um corredor imenso. Nas paredes, quadros, muitos quadros... e, num novo estalo, a cara rugosa no espelho do banheiro. Cabelo branco e ralo, braços flácidos e o roupão branco.
Uma voz suave lhe chama: ‘papai’.
Papai! Não dava para acreditar depois de tantos anos. O coma. Os ferimentos e a dor. Os aniversários no hospital. Choro. Lágrimas. Surpresa.
Uzdo se volta para a pequena Myra e ri apontando para a cabeça.
Contei essa história várias vezes. Você dormindo. Você mudo. Você morto. Você no silêncio. Contei essa história várias vezes...