E (R) ROS...
Curioso o trato humano. De reparar despretensiosamente uma formiga andando a descobrir as origens dos raios cósmicos, o salto no olhar ilude a retina, a ponto de fundir paixão ao resto do que pode haver.
Assim há criações. Quem pinta uma casa descobre na pintura uma ilusão guardada para aquele momento. Ilusão indiferente a um mal-estar na parede. Não há o que ver, salvo entre o rolo e a tinta, como um segredo selado. Os que ficam debaixo apenas vendo o homem roçando a parede não descobrem o que se permite. Nem o sonho se permanece. Pintura acabada, artista morto. Depois envelhecem paredes no mundo...
Por exemplo, aquele que escreve cria suas histórias, constrói seus personagens e se lembra do que não se esqueceu. Lembra pela primeira vez. Sua imaginação ocupa o ”resto do que pode haver” entre um e outro escorregão nas palavras, porque é tempo de criar. Não que ele esteja isento de investigação e culpa. Mas tropeçar nas palavras é, não raro, como não ver o sol costumeiro e luminoso.
Quase sempre quando escrevo minhas histórias, só depois de publicá-las vejo os vieses. Um dia, de ortografia à organização sintática mais complexa, não me pude prender à superfície sem pouco descuido. Foi quando um amigo me ligou e me disse: “aquele termo está mal empregado”. Revi o texto, descobri, dessa vez eu mesmo, outros tropeços, mas o texto não se mutilou. E mais: o escrito resistiu a mim mesmo. Ele já estava ali. É assim a paixão: não há que esperar. Seu cuidado não me rejeita.
Mas dali a diante pensei: “preciso de um revisor”. O revisor veio e investiu em outros textos, mostrou-me esse e aquele desvio e, antes de meu espanto, vi outros deslizes que, se não demitiram o revisor, puderam cabê-lo em entrelinhas.
A maneira de visualizar a curiosidade de que trata a introdução deste texto veio-me arbitrariamente, mas o exemplo do pintor não. Sem medo de transgredir, meu quarto esteve sendo pintado, enquanto eu digitava, como a disputar duas artes complementares. Certamente o moço na escada me perguntaria o mesmo que eu: “o que há em fazer isso?”. Passado o estranhamento, eu iria cobrar-lhe um pouco da textura, ele despertar-me-ia fonte e efeitos de texto e nossas habilidades não se desencontrariam. Possivelmente eu não teria a sintaxe reprovada, mas ele desenharia na parede um homem escrevendo bem.
Mas seu trabalho também findou. Com a severidade de uma doméstica, um perito reclamaria da tonalidade da cor. No meu caso, um amigo-observador sugeriria mudanças no núcleo dramático ou, com mais amor: ”Deve ter sido falta na digitação, não?”.
Então nós, quando mais sonhamos que fazemos, dizemos ensimesmados: “Perdoem-me os desacertos, aqueles em ter-se que sonhar”.