O SEGREDO DA VIDA

Ana estava cansada. Esperar dava a sensação de o coletivo haver atrasado. Revistava a parada para ganhar a certeza da partida, a satisfação de si num ponto de ônibus.

Estar inquieta apontava o momento no qual cabia a ela reclamar. O movimento do corpo reclamava, a ponto de ela esquecer a vinda do ônibus. Sabia do jogo certo de impacientar-se imponente: a espera tirava-lhe o desejo de partir.

Mas o coletivo afinal chegou. Mal teve tempo para o vago espanto, a pouca estatura se enfrentou na multidão deixando-a distraída do próprio sobressalto. Acreditava agora que, caso houvesse atraso, era um atraso pontual. Entre um empurrão e a vitória de não ser empurrada, a mulher fitou o motorista, como se fosse negado a ela um direito. Ali dentro, em silêncio, estava cheia de direitos e a defesa, nunca os declarar. Ei-la na sua reserva, pois restava o ar obstinado de conduzir-se costumeira, livre na sua contenção.

A canseira se confundia com o silêncio, até salvá-lo. Com o olhar investigativo e imediato, havia no mundo o motorista e a bravura da mulher, embora faltasse a mulher.

Alguns passos triunfantes e Ana ressurgia na roleta. Parecia ser julgada, mas a certeza da inocência não tirava a acusação. Conferia o dinheiro antes do cobrador. Com efeito, contar as moedas prendia mais que sofrer a subtração.

─ O troco, moça ─ retrucava o rapaz, suspenso na paisagem rápida da janela.

Ana pronunciava um agradecimento diário. Mentia para si mesma, quando dava por resolvida o cobrador nunca ouvir sua voz. Era um obrigado decisivo para deixar tudo para trás. A distância aos poucos dava uma garantia que reinaugurava o sentimento de regresso: viver.

Atravessou a roleta com familiaridade e com conquista. A frieza do cobrador anunciava permissão para passar. Passou oculta, vingativa. Ele ficava para trás, como ficavam os edifícios e os homens nas calçadas. Para trás tão depressa; por não terem tido tempo de passar, passaram o cobrador e a pequena gaveta, onde ficou depositada a marcha da mulher. E assim seguia em sentido contrário ao do ônibus e numa força lhe distanciando os pés para reunir o corpo, agora pequeno para ela. Ao disputar espaço com outros passageiros, sentia pudor; a moça não o entendia, não o conhecia, mas sabia comunicar-se bem com ele, penosamente.

─ Vou ficar dura, resmungava rápida e sombria.

E, dura, parecia tencionar obstrução dos desejos involuntários dos homens ao tocá-la, mesmo achando-a feia.

─ Arre!... ─ sibilava.

Nem sempre sabia o que dizia, mas saber que dizia era a salvação, o elo com o mundo. E o mundo no transporte coletivo também permitia o elo com a vida: ela e o espaço a ser finalmente ocupado. Enchia-se de ilimitadas apatias. Uma vez fora dona de um apartamento inteiro, quando a patroa lhe confiou a propriedade. Como Ana estivera bonita nas fotos de formatura, na sacada de onde avistara um horizonte de minúsculos carros, sem os homens do ônibus para molestá-la no ritmo diário da vida. Outra vez fora dona do mundo inteiro quando, de posse de uma vassoura, acertara em cheio um rato. Ninguém mais descobrira o invasor e só a ela caberia salvar a casa, enquanto a patroa dormia indefesa, a perigo. Ana habilidosa, a derradeira da casa. Crime perfeito. O rato se metera com Ana. O rato.

─ Ainda volto no sono da patroa, perturbou-se, quando ressurgiu o ônibus.

Não bastou o cuidado e um solavanco arrancou suas mãos de algum apoio anulado pela força dos freios. Na verdade, o apoio estava nela própria. Eis o elo abocanhado pelo impacto no ar. O elo no arremesso da matéria, tão leve agora, para uma das janelas de onde à moça se impunham bares e restaurantes.

─ Mãe! ─ balbuciou, num sorriso de lucidez e de autocrítica.

Ninguém a escutou e, lançado violentamente, o corpo a fez engolir saliva, semelhante a quem comete crime de omissão. Ana se culpava de sê-la e o crime custava a boa-fé da moça em enganar os outros com a própria verdade, num sorriso sem cabê-la. Não lhe cabia o sorriso de dentro para dentro, os músculos contraídos na pouca carne, os olhos nos bares e nos restaurantes, agora o elo de sobrevivência, o fantasma de si. E sobrevivia mirando-os, como a amá-los sem capacidade para ser livre. Melhor segurar-se na Ana que se desequilibrou. Se as mãos empunhassem na vidraça, teria chances de amar a possibilidade de ter amor.

─ O mundo! ─ bafejou, voltando-se para os lados, num movimento vão do corpo. ─ O mundo!

Recuperando as forças, reergueu o rosto já com coragem para o medo. Foi quando, no vidro da janela, um vulto montava-se a cada raio do dia. Ana viu. O rosto contra si lha ocupava. Uma vida e seu retrato em sinceridade sombria e silenciosa, fresca e chocante. A mulher, sem perceber que se evitava, começou a ser-se. O sentir agora era apenas a disposição de experimentá-lo para durar inteiramente; o rosto casual no espelho, uma prestação de contas paga com a própria dívida: ela.

De repente Ana envelhecia. Aquele rosto forasteiro lha acusava e queria querer...

─ Eu quero! ─ crispou a testa com arduamente.

Antes que o reflexo desaparecesse na própria origem, a mulher lembrou-se da família no interior. Lembrou que fora tirada de casa por uma força dita somente em despedida. Esqueceu o ônibus e sorriu já sem espelho.

─ Eu vi!

No fundo, queria lembrar-se de si mais vezes. Veio a vontade de ficar para sempre no ônibus. Haveria de parar?Os pneus deslizavam sobre o asfalto, sobretudo o estado de ônibus nos rostos nem alegres, nem tristes. Via em todos um adormecimento a torná-los intervalados da espécie humana. Via neles a falta de qualquer necessidade, porque bastava o estado de ônibus. A vida – o itinerário em si suficiente, vitória sem direção. Mas logo teve a cisma de que o mundo lá fora, em movimento, deixava o veículo empurrado para tudo correr. E era estranho estar lá fora para ver o coletivo andando e observar o mundo parado, sendo apenas um lugar. Assim, o ônibus seria o inverso das coisas – meditou, sentindo-se inteligente e encorajada.

Mirou um banco, enquanto removia o suor do rosto, julgou-se concluída, pois conseguir um lugar dava a certeza do cálculo. Conferia o pequeno corpo preenchendo o assento em submissão, sem chances. Sentou-se sôfrega e vaidosa. Acomodada, estava livre das possibilidades do mundo. Respirava livre e sem superfície. Ana se era, quando sumia no olhar sem esperança nem tristeza. Não via as coisas correndo ao longe da janela, porque representavam o próprio olhar. Ana – toda certeza e abandono, imediata. Sentia o imediatismo suspenso no banco por um sorriso largo de moça. Obedecia ao sorriso, por não saber que sorria. Paralisada, ocupou todo o momento, de modo a tornar-se um cumprimento sem prévias nem réplicas. Sobre o banco, ela era a finalidade. Que coincidência o existir! Eu sou exatamente eu, logo eu; suspirava com um fôlego desistindo na metade do curso para dar vez ao próximo sopro, sua mensagem de vida.

Mas o momento de sentar-se acabou devolvendo o esforço de ter qualquer certeza; a sensação de conferir subitamente uma parede no escuro. Agora traída pela falta de repercussão, pelo sonho absolvido ao tempo de apenas sonhar; nada mais restando senão o sonho em sua honestidade que é traição. O ônibus de novo cessava, mas dessa vez ela quis examinar qual parada. De tantas vividas ao menos uma deveria esperá-la. Era um ritual intenso e confuso, parecendo um beijo no espelho, ausência de quem beijou, para logo mais conferir o batom surgido antes da boca. A pequena pausa foi-lhe a descoberta gratuitamente inacessível. Ana sentia bem estar estacada, mas o ponto de ônibus estaria prestes a partir, empurrado por ela. Num lampejo, a existência da moça resultou na parada. Os olhos, agora mais vivos, de novo a substituíam.─ Queria ser no mundo mais um tanto, pensava lacrimosa e confiante, como a ter estratégias para enganar Deus.

De quando em vez a moça desejava livrar-se do mundo para ser nele mais um tanto. A ausência exibia seu aconchego, sua luta de espectadora. Afinal, estava no intervalo entre o sim e o não dos passageiros. Passado o instante de algum desejo, já não sabia mais o que fazer consigo. Em verdade, nunca soubera, mas aprendera a lidar com suas estranhezas concebendo-as fria e diligentemente. Ao olhar para estranhos, o coração apertava dividido entre um estado de covardia involuntária e uma grande atenção em desequilíbrio. Não conseguia acomodar percepções conflituosas ao fixarem nela referências exteriores. Às vezes era obrigada a olhar para alguém, não sabia por qual motivo, mas cismava haver motivo, como uma imposição sem gestos que não antecessores: o gesto do braço do carrasco porque se sabe da sua existência, mesmo não tendo sofrido-o propriamente. Um espanto antecipado a tudo era sua mais clara transmissão de vida, embora a clareza representasse aos outros uma pequena ameaça da qual se pode tirar vantagem; para ela, a esperança medrosa de mais uma vez suportar nos outros o merecimento de sua dor. Assim era sua forma de tornar curiosa a vida cotidiana e, em recompensa, ser absolvida no fim do dia, no descer de um ônibus.

Alguns descendo e outros subindo repetiam o coletivo, numa esperança soletrada pela indiferença que une. Eis o instante no qual Ana se vencia gratuitamente. Não lhe custava senão a anistia de simplesmente ser. Crer seria cobrança. Mas, não raro, cria ser impossível a felicidade, e se podia ser feliz através da própria incapacidade. O não-ser construía uma nova existência. A felicidade sem princípio nem fim, mas simultânea à Ana. Tudo tão simultâneo à moça, as surpresas e as mesmices confundidas com o tempo passando, o contentamento por não saber senti-lo. Os olhos velavam o resto da vida no corpo, abrigo tal qual fugir de uma chuva para senti-la bem. Simultânea e perene, despercebidamente próxima da alma, a moça renascia de uma liberdade desconhecida e certa, como o perfume da flor ausente trazido pelo vento. Nem um susto assustava. Nenhuma vida se lhe somava, a não ser aquela que não era sua por puro capricho de existir nela. Ana tornou-se a vida no ônibus, o eu nunca havido para não se desgarrar dela, para não traí-la. A velocidade de tanto existir ao seu tamanho tornava-se concomitante ao próximo instante de consumir o espaço livre. O instante sem tempo para ele próprio era o tempo. As horas mais calmas se concentravam na atualidade, locomoção sem futuro nem fim. O embalo do coletivo comandava a vida da mulher.

Quando o ônibus se aproximou do destino da moça, os passageiros de repente devolviam o motorista e o cobrador, outrora vencidos pelo medo afobado e acolhedor de Ana. Pontualmente vã, erguida agora no corpo, levantou-se do banco e assim parecia fugir de uma arma invisível. Ou da arma teria a mera possibilidade do tiro. Levantou-se arrebatada nas entranhas, sem alicerce, mas humana o bastante para interromper as artérias, para a vida valer até ali: uma nova chance sentida, quando se põe os pés de novo no chão. Ana estava orgulhosa e abandonava sua história cotidiana ao olhar para trás. Ainda no ônibus, olhava para trás, em pensamento, e via um presente remoto; melhor seria estar desprovida de tempo. Revia em vários espelhos seu rosto desaparecendo, uma floresta viçosa, gasta de tão virgem. Ana havia se desperdiçado ao tempo do ônibus e a vida dada a ela estaria prestes a partir no coletivo, sem explicação. A explicação estava nas perguntas que para haver não chegavam a vir.

Permitida e nebulosa, finalmente encarou a porta de saída. A moça logo viu uma passagem de vida mais uma vez se repetindo para a grande surpresa diária. Em verdade, a surpresa estava nos outros, mas Ana era quem escondia o entusiasmo. Nesse momento, figurava a mulher para muitos ônibus. Apertava o peito com um esforço vão de violência, estava em seu espanto livre, em sua expressão protegida por não haver mais vigília. Dessa forma confundia chegada com partida. A qual recorrer? Recorria a ela própria. Não saber dar-se garantia a chave de permanência na vida. Mas já não tinha uma vida. Ia e vinha, porque uma vida. A mulher pulsava dentro de si para ter com o mundo no que ele lhe pertencia: uma ausência tão complementar.

A vida lá fora era alcançada num suspiro despercebido, favorável. Arrastava o corpo numa intimidade cega, sem romantismo. Na primeira rua, na segunda e em outras tantas em lances seguia para sentir a intuição fazendo de sua pouca inteligência a preparação para a vida. O que havia de ordem e de superioridade humana era atenuado pela força que, se não havia um preço, lhe iludia a feminilidade. Ao avançar, tudo era encontro e poder de escolha, numa vaidade a pôr a rua no lugar do caminho.

─ Em algum lugar,... Em algum lugar... ─ distraía-se ofegante.

Seguia e sua sorte era a multidão, no fundo, o lugar pretendido. Sentia correr brevemente uma segurança de calçamento, concebia sempre novas as pedras. Concebe-se e basta, pois toda a gente pronuncia a chegada e a partida do ônibus e a esse propósito não mentem ou a mentira seria a única verdade.

─ ••• ─ arfava, numa ausência nas maneiras.

Seus gestos escondidos e inúteis atenuavam. Uma mulher pouco presa a seu espaço não ousaria as respostas das quais Ana vivia sem ter as perguntas. Havia uma avenida além do alcance da vista e o mundo batia no peito para ela guiar-se com fácil profundeza longe da memória.

─ •••! ─ contentava-se, esquecendo o cansaço e a chegada.

Ela tornou-se o itinerário. Ia porque descera do coletivo e assim entrara: num golpe do tempo. Se a chegada para uns é a partida para outros, diluía-se no tempo, tesouro esquecido no brilho demorado a que Ana chamava vida.

Conto premiado na antologia Pequenas Histórias, Grandes Emoções (G´rafica Belacop, São Paulo, 2010),

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 02/07/2009
Reeditado em 22/01/2012
Código do texto: T1678913