Paolo
 
Dalva Agne Lynch



Paolo – cabelo cacheado emoldurando um rosto enganosamente infantil, com grandes olhos escuros e boca ampla. Imberbe. Mas não há carmim na face de Paolo. Sua pele branca só contrasta com o azul ao redor dos olhos. Penso em São Sebastião, na tela de Botticceli.

 
Todos os dias, eu vejo Paolo emoldurado pela janela alta de seu quarto, pintando. Depois ele se senta no peitoril, a cabeça contra a moldura de madeira, absolutamente imóvel.
 
Até ontem. Ontem não havia ninguém na janela de Paolo. Hoje tampouco.
.......
 
Os dias se passaram, mas Paolo não reapareceu. Preciso saber o que houve com Paolo. Conto meus dias pela sua presença silenciosa.
.......
 
Hoje vi um carro da polícia à porta do prédio de Paolo. Corri escada abaixo e entrei no seu prédio. Lá no alto, no sexto andar, sua porta estava aberta. Ninguém me cortou a passagem quando entrei.
 
Deitado na cama desarrumada, Paolo parecia dormir serenamente. Mas seus olhos estavam abertos – seus grandes olhos escuros. Olhei ao meu redor, naquele quarto que imaginara por tanto tempo. As paredes estavam cobertas por desenhos e pinturas, todas assinadas. Paolo. Anjos, arcanjos, demônios, sol brilhante e fogo vermelho. Crucifixos e estrelas. Cidades feitas de cristal, cavaleiros em armadura de prata lutando contra dragões. O trabalho era magnífico.
 
Caminhei ao longo das paredes, absorvendo a paixão das cores. Uma tela jogada em um canto, voltada para a parede, me chamou a atenção. Abaixei-me e tomei-a. Não havia figuras nem cores sobre a tela. Apenas um poema, escrito em tinta negra:
 
“Também eu me vi através de portas abertas
E também encontrei que me havia perdido
Em buscas que me lecvaram para longe de mim...
Também eu queria que me tirassem do nada
O que me transformei, com tanto que me tornei...
Sim, acorde-me de mim mesmo, do nada que sou
Antes que me desfaça totalmente
Antes que o que pensei ser verdade se me caia
Por sobre esta vida que desperdiço
Que me levou em busca de algo que, ao ser encontrado
Levou-me a uma perda maior!
Acorde-me! Chame por meu nome e me salve!
Salve-me, faça-me real!
Você me viu? Não, claro que não.

Se me tivesse visto, entenderia que estou desfeito
Que busquei por aquilo em que acreditei, aquilo que perdi
A ingenuidade que se me foi embora
Porque, ao se destruir os mitos infernais
Destrói-se também os deuses de algum céu imaginado.
Todos eles, céus e infernos, cairam-se-me ao chão
No concreto despedaçados, contorcidos como minha face
Que não mais reconheço quando olho no espelho...
Mas... Se você me viu, se você me sentiu -
Salve-me do nada em que me tornei!”

Voltei-me e caminhei lentamente de volta ao meu apartamento, pensando. O que seria dos dias, sem Paolo à janela? Será que ele estaria agora nas suas cidades de cristal? Será que existem essas cidades de cristal, ou fogo e enxofre, ou qualquer outra coisa além do que posso ver?
 
Não sei. Sentei-me no peitoril da janela, a cabeça contra a moldura de madeira, absolutamente imóvel. 
 
 
 

Dalva Agne Lynch
Enviado por Dalva Agne Lynch em 20/06/2009
Reeditado em 06/09/2009
Código do texto: T1658500
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