A CHUVA

Não, não na pré – estação. Havia tosse sinalizando mais que uma vizinhança: o fevereiro de torrentes e de vozes guardadas atravessando o oitão. A casa encolhia, quando um suspiro simultâneo ao arrepio inundava-me nos pingos mínimos, que venciam o telhado.

Uma mariposa me olhava com as asas. Há muito estivera queda; as patinhas sôfregas pareciam ter no grudar da parede úmida seu único objetivo. Refugiara-se de um dilúvio? Eu apenas temia sua forma de vida tão dada à morte? A casa era um arranjo da chuva? Chovia...

O dia escuro se somava ao tamborilar da chuvarada, que a tudo permitia de si uma passagem sempre renovada por fios de água. Da janela eu lançava meu olhar viçoso às plantas do alpendre a se alimentarem da violência pluvial. Havia uma comunicação íntima entre água caindo e correnteza: o relevo raivoso dissolvido em queda d’água a surgir por capricho do tempo. O resto, desabrochar de formas de vida a esconder-se entre relâmpagos e trovões, mistério revelado para o próprio instante de mistério. O mundo estava paralisado pela chuva e nada escaparia ao estado único de coisa molhada ou de coisa que não quer molhar-se. Essa última condição era a maior conquista humana. O mais não passava de chuva caindo, de dobrar de ossos num suspiro primitivo.

Num exame de porta fechada, conto que meu subterrâneo se protegia não de rejeição corpórea, mas de uma tão fácil enchente, quando viver é apertado. Sentia uma liberdade lacrada; eu grávido deste corpo, o pequeno peixe prestes a vomitar meu espaço. E também enorme, eis que me tornava apertado. Tempestuoso, lançado para fora entre ser e ter esperança: eu surgia quando excluído, semelhante a quem acordou e não se quis levantar.

O cheiro de terra molhada exalava mais que um aviso de agasalho. Antes, respingava o princípio do ritmo do mundo em consonância com o momento de esticar o corpo. No fundo eu quisera libertação do abrigo e aportar-me: ”Estou chovendo!”. E os pássaros rápidos validando esconderijos, toupeiras em pânico. Estou chovendo, diria sem secar a esperança de chão, sem envelhecer cumeeira de tanto ver luta terrena, sem batente encharcado num abrir de porta que se abranda.

E se eu abrisse a porta, num embalo ribeirinho, e desafiasse a estação o que desafiaria? Uma bondade triste? A falta de desafio, já que eu me empurrara sem tempo de aviso? A vastidão sem ribanceira? Anonimamente atmosférica? De pântano e estilhaços camuflados na própria fração em correnteza? O lábio duro, vago no rosto? O rosto antes de mim lançado à chuva?... Seria o desafio de ter que enfrentar a falta de enfrentamento? Entregar-me tão rápido que a rapidez se converteria no próprio momento do poder de chuva?... Uma velocidade tão minha que nem teria tempo de rever-me? Eu seria apenas a vez de mim, feito uma gota, que reaparece noutra para ser a mesma?... Mas eu sabia que as respostas estavam em não fazer perguntas. A única probabilidade era a chuva. Aleluia, Chuva! Tu te respondes, posto que és barulho mudo, falta de luta vitoriosa ao cair!

Aleluia, Chuva!, és forma de deslizar ensinando a desaparecer no olhar definidor. Também o rio, o mar, o poço, a lama, o matar da sede, o homem; simplesmente sem seres coisa alguma. A mesma das nuvens, e logo te escondes na própria amostragem, fiel exposição. Naufragas aguada e te devolves a mesma renovada, gota instantânea, abundante na presença de sumiço.

Haverás em água cortada, em pingos que restam sem falta. Gota a gota aos poucos o acúmulo; és toda. Nunca fracionas – o que transborda também te faz sozinha. Aleluia, Chuva! Solidão é completude, alcance da sombra de um corpo. A procura de caminho é o caminho, enquanto o procuras. Reencontra-te noutras águas; és a outra de ti num instante de oceano. Na demora em pingo, outros pingos ressurgem em volume do que mais tarde serás para a resposta às gotas que virão.

Chovia, chovia... Quando abria a mão, sentia o esforço inútil de quando estivera fechada. É que água precisa de prisão para ser livre. Mesmo num tanque de concreto sem fenda há ainda liberdade. É que água passa a existir apenas para si própria. Nesse caso, um vinco é pista falsa. Tocá-la seria efetivar uma nascente; consumi-la, tentar a mesma que escapara da mão fechada. Noutra sede se liberta há milênios das alturas. Permanece no que existe para não se molhar. Ela é a própria salvação, salva ou não, por não se saber. Por isso no frio sofro a traição de ter ganhado ou perdido. É preciso ser a vontade de água, a fim de que cada gota fuja em sede. A água é sempre o princípio.

Mas agora eram os amores e ódios secos. Uma poça de desejo de farpas sob a indiferença dos pés do calor humano. De tanto banhar-me de mim, acabei não me restando, como uma andorinha perdida na revoada. De tanta espera, o que era cálido ceifou o inverno. De tanta liquefação, restaram estio e aragem num sopro de vida de resfriado tardio.

Lá fora um mundo líquido na sua conquista por água abaixo. Marcas de chuva confusas nos primeiros indícios de vida enxuta. A vida, uma virga, espalhou sementes no subsolo. Os filhos surgiram vigorosos, banhados de chuveiro; cresceram sobre o concreto, atentos ante o para-brisa e pescaram peixes num dia de sol.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 17/05/2009
Reeditado em 10/01/2011
Código do texto: T1598522