PENSAMENTO VERTICAL - [Desafio Literário IV]
Daqui de onde estou, a visão é hipnotizante. As montanhas desenham belas curvas no horizonte, namorando à distância o céu que as corteja com suas belas plumas de algodão. Nunca vi tão belas nuvens. O vento que bate forte no meu rosto, traz uma agradável sensação. Ponho-me a observar o sol. Estou mais perto dele do que todas as pequenas formigas invisíveis lá embaixo. E apesar da insignificância da diferença entre nossas distâncias ao sol, sinto-me incrivelmente satisfeito. Um bilionésimo de fração mais perto dessa gigantesca e misteriosa bola de fogo, uma máquina fervente que não para de trabalhar, mesmo de noite, transformando a escuridão da lua, insossa sem sua luz, em um romântico cenário para as histórias de amor.
Dou um longo suspiro, apreciando a imensa esfera de lava pairando misteriosa no centro do nosso universo. Flutuando no vácuo. Curiosa gravidade. Às vezes, mesmo perante tantos cálculos matemáticos, estudos premiados e incontáveis teorias, prefiro não acreditar nessa força invisível. Afinal, nunca vi a gravidade em exposição em canto algum. O desconhecido é a magia do inculto. Prefiro arregalar os olhos de surpresa, de quem não acredita que o mágico pode tirar uma moeda de trás da orelha, do que desenhar no rosto um ar de soberba, com pose de quem já viu de tudo nesse mundo. Gostaria de ver que cara uma pessoa dessas faria estando onde estou. Dessa vez, na situação em que me encontro, devo admitir, a gravidade me dá calafrios. E será ela também quem me trará a solução.
Rebobino meus pensamentos três meses. Minha vida nunca foi um filme hollywoodiano. Os últimos meses, porém, têm sido longos e penosos para mim. Os problemas começaram no amor. Maus agouros. Conhecemo-nos no colegial. De acordo com os meninos, Ritinha era apenas a quarta menina mais bonita, em uma sala com sete. E eu concordava plenamente, a mais bonita era a Lívia Bastos, seguida pelas gêmeas ruivas idênticas. As meninas diziam que eu era o terceiro mais bonito, em uma sala com quatro (eu também era o “segundo mais feio”, mas costumava omitir o número de alunos da sala em conversas posteriores). O mais feio era o Zeca, que acabou se enamorando com a Lívia Bastos, e depois, se não me engano, casando com uma das gêmeas. E eu, que nunca gostei muito de competições, escolhi a Ritinha. Como ela estava fora do pódio, ninguém comentava muito sobre ela. Foi por pura preguiça que decidi que ela seria minha primeira namorada, mas acabei me apaixonando completamente. A atração dos corações. A gravidade do amor. Primeiro beijo, primeiro poema, primeira vez, primeiros planos, primeira decepção.
Nós éramos noivos até três meses atrás. Depois de 8 anos juntos, marcamos o casamento. Eu fazia o papel da mulher preocupada. Cuidava da escolha do Buffet, da lista de convidados e de todos os outros grandes e pequenos detalhes. Foi então que ela pediu um tempo. E eu que pedi apenas explicações, fiquei a ver navios. Semanas depois eu a vi saindo de uma cafeteria de mãos dadas com um antigo colega de trabalho (e não é que o filho da mãe lembrava-me muito o Zeca?). Talvez a culpa tenha sido minha, de não ter percebido que o “aceito” dela não foi tão convincente. Mas o que se faz em uma hora dessas? “Você tem certeza que aceita?”. Não cairia muito bem. Contudo, o que poderia não cair muito bem acabou, no fim das contas, cedendo completamente, sobre minha cabeça. Cair, ceder... maldita seja a força gravitacional dos problemas. Daí pra frente eu acho que minha vida não conseguiu mais se manter em sua órbita.
Meu salário despencou pouco antes de meu emprego ser lançado ao espaço sideral. Alguns amigos me ligaram quando souberam da notícia do casamento cancelado. Disseram que eu precisava sair um pouco, distrair. Encontrar uma mulher de uma noite só, para me divertir, já que eu tinha sido um homem de uma única mulher. Acabei não me dando muito bem. Eu era o único naquela roda que não conseguia atrair nenhum “corpo celestial”. Confesso não ter sido muito esperto, pois escolhi como parceiro de noitadas o Tico, o número um da sala. Não fazia diferença alguma nos dias atuais. Tínhamos mudado muito. A mesma barriga, a mesma barba mal-feita. Mas na minha cabeça, ainda éramos as mesmas crianças que colocavam a lição de casa todos os dias em cima da mesa da Dona Eulália. E, portanto, eu acabava agindo como o “segundo mais feio”. Depois da quarta noite sem sucesso, desisti. O mundo nunca girou em torno de mim mesmo.
E então a saúde da minha mãe resolveu despencar (junto com a bolsa de valores e minhas últimas cifras nela aplicada). A notícia que recebi do médico foi: “O estado de saúde de sua mãe é de alta gravidade”. O outro tipo de gravidade. A gravidade dos enfermos. Minha mãe, fragilizada pela idade, acabou não resistindo. A última coisa que ouvi antes de sair durante a escolha da lápide, foram as palavras de um tio, distante, saindo por baixo de seu bigode: “Já gravou o nome? Ok! Agora grave a idade...”. Grave-a-idade! Eu já tinha encontrado minha resposta.
E agora aqui estou. Minhas mãos suam muito, apesar do frio. Olho para baixo. Sinto medo. Sinto a liberdade. É chegada a hora. Prendo a respiração. Fecho os olhos. Ainda hesito alguns segundos antes de deixar o corpo cair para frente. E a queda se inicia. Os braços abertos. A respiração ofegante. Cada milésimo de segundo me parecem dias. Penso na minha infância difícil olhando para os rios, cortando as planícies como veias cheias de vida correndo em seus tortuosos caminhos. Lembro-me do meu emprego, onde sempre me dediquei muito e nunca fui reconhecido pelo meu verdadeiro esforço, enquanto o vento tenta me empurrar para cima de novo, como se lutasse contra a gravidade. Vejo tudo aumentando rapidamente de tamanho enquanto passam pela minha cabeça vários flashes desbotados dos momentos felizes que passei com a única mulher da minha vida. Fazendo alguma força no pescoço para olhar para cima, nos segundos que me restam, eu tento procurar, no céu, a imagem de minha mãe. Entretanto, o máximo que eu consigo ver é uma cúmulus nimbus parecida com o Mickey Mouse. Um sorriso se espalha pelo meu semblante.
Conforme o chão vai se aproximando ainda mais, a adrenalina toma conta de mim por completo. No pensamento vertical minhas idéias voam. Minha mente se liberta. Sinto no peito um sentimento maior que o amor e que o ódio. E na infinidade de possibilidades das idéias eu sei que o mundo, mesmo fora do eixo, tende algum dia a voltar à sua órbita novamente. E enquanto não a encontrar, esse planeta pode pairar livremente, voando para onde bem entender, até decidir qual é o sistema em que se instalará pelo resto de sua existência. Ou até se desprender novamente. Sem fórmulas. Sem regras. Sem leis.
“É agora!”, digo puxando a cordinha que abre o páraquedas.
Uma freada brusca me dá a impressão de ser puxado para trás. Fico aqui, flutuando no ar, ao sabor das correntes de vento. Continuo, por alguns minutos antes de tocar o chão. Na descida os pensamentos continuam a trocar figurinhas, a perderem sua timidez uns com os outros. Encontram respostas para questões que nem sequer foram ainda formuladas. Tudo flui. Toco o chão com a leveza de um beijo materno. Meu corpo possui toneladas a menos. Sinto a mão de minha mãe em meu ombro, e os conselhos silenciosos da minha consciência ecoando na minha cabeça. Viver, afinal, é um estado de espírito.
A gravidade para mim continuará inexplicável, inacreditável e igualmente mágica, pois provei hoje, a mim mesmo, que não podemos a vencê-la, mas, se nos arriscarmos um pouco mais, podemos tê-la a nosso favor.
Planos para amanhã? Rafting.
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Desafio Literário IV
Tema: Viver Entalado
Réplicas dos escritores e amigos:
Álvaro Luís:
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Suzana Barbi:
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